Mercedes Gameiro
Drímer deteve-se na janela por alguns minutos, observando o rastro de luzes amarelas e vermelhas que o Mestre deixava ao desaparecer na estrada estreita mesmo sob a luz dos dois sóis de Delírio. Suas duas sombras, projetadas uma para cada lado, tornavam sua imagem mágica: Três seres, muitas cores. “Estranho...o poder do Mestre não consegue poupá-lo de parecer tão frágil quanto o resto de nós.”
Lavordei. Como o nome diz, é dia de trabalho. Muito trabalho para Drímer – responsável pela limpeza das almas da Ilha de Delírio. É preciso esperar a hora mágica: a hora em que as sombras desaparecem no encontro dos Sóis. Dois minutos, vinte e quatro segundos e nove décimos era o tempo que ela tinha para lavar, purificar e renovar as 26.419,83 almas que habitavam as matas de Delírio para proteção dos seres vivos. Quem melhor do que Drímer Redinclauds para uma função tão delicada?
Assim que os sóis começaram a subir, Drímer pôs-se a caminho da mata. A estrada era escura mas ela não tinha medo. Medo era coisa rara por essas bandas, onde os seres são felizes e obedientes.
Depois da curva da pedra que brilha, Drímer sentiu um calafrio. Seu corpo ficou paralisado pela sensação de ser vigiada por grandes olhos vindos da mata. Nunca sentira nada parecido. Não conhecia o pavor, a angústia, o temor - sentimentos novos, de cor opaca, sem luz. Olhando em volta, percebeu luzes vibrantes por entre as árvores.
Julgou ser algum animal feliz e voltou para o caminho. As luzes projetadas por animais felizes são diferentes das luzes projetadas por seres felizes. São vermelhas e amarelas como a luz dos sonhos no “istoriquétier”. “É porque os animais não seguem as leis.”
Já na Cachoeira dos brilhos, balançou o pequeno guiso dourado de chamar almas, sentou-se na beira do lago e sorriu ao ver o alegre balet de luzes claras que as almas dançam no dia da limpeza. “Calma, queridos, ainda é cedo. Não precisamos de sombras quando queremos luz. Dancem! Meu coração se alegra com a sua festa!”
Drímer gargalhava de alegria e enchia a cachoeira com sua beleza. Seu sorriso, sozinho, já era capaz de purificar o dobro das almas que ali estavam. Na hora mágica, Drímer mergulhou no lago com seu guiso e seu sorriso. Todas as almas a seguiram de pronto para a purificação.
Ao voltar para a superfície, Drímer encontrou uma das almas sentada na pedra.
- Seus olhos brilham diferente hoje Drímer.
- É porque estou feliz.
- Vejo que encontrou o amor.
- Shhhhhh! Não diga isso! Eu não saberia reconhecer o amor se o visse. Você sabe. É pecado!
- Não percebe, Drímer, que algo mudou na sua luz?
- Sim, mas deve ser porque dormi pouco.
Olhou para os lados, aproximou-se da alma e continuou, sussurrando:
- E li as luzes secretas do istoriquétier do Mestre...
- Leia suas próprias luzes, minha menina. É onde você vai encontrar o que procura.
- Mas o mestre disse que isso me levará à infelicidade.
- Isso poderá salvá-la, Drímer. Mostre isso ao Mestre.
A alma gentil se foi com movimentos suaves. E, novamente, a sensação terrível de que grandes olhos gélidos a observavam voltou a assombrar Drímer. Sentiu seu sangue congelar. Sua luz própria pareceu diminuir em brilho por alguns instantes. Um ruído misterioso. As harmoniosas árvores ao seu redor pareciam esconder o próprio medo e a própria solidão. Algo se deslocava sombriamente. Drímer procurou utilizar de sua luz para revelar a identidade do algoz de sua alegria e de sua felicidade. Nada. Mais sombras. Seu poder e sua beleza pareciam limitados diante de tamanho perigo. Ameaça. Pensou em correr. Tarde demais.
Parte IV
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