quarta-feira, abril 11, 2007

Daren e Mariana X

(Falta de tempo pra postar...vou dar uma molezinha...)

Por Mercedes Gameiro - Desafio Caixa Preta

S
ão duas horas da manhã e Mariana ainda está sentada no corredor do hospital, esperando que Daren esteja fora de perigo. As horas demoram para passar e não deixam que as lágrimas finalmente sequem. Uma senhora caminha de ponta a ponta do corredor, repetidamente, sempre olhando para Mariana esboçando um semi-sorriso de solidariedade. A mulher vai e vem, e vai e vem, até que senta-se com dois copos de café na mão.

Mulher:
Que tal um café ruim pra acordar?

Mariana devolve o semi-inexistente-meio-sorriso e aceita.

Mulher:
Deve estar péssimo, mas pelo menos está quente. (abre uma lata que tira da bolsa) Biscoitos?

Mariana recusa. O silêncio mórbido das noites em hospitais pesa nos olhos das duas por alguns eternos instantes.

Mulher:
o que houve com o seu marido?

Mariana aperta os olhos pensando em explicar sua relação com Daren, mas desiste e responde…

Mariana:
acidente de carro. Na porta de casa…terrível.

Mulher:
machucou muito?

Mariana:
Traumatismo craniano. Está em coma induzido. Sei lá até quando…

Mulher:
E as crianças? (pausa) Vocês têm filhos, não têm?

Um furacão adentra os ouvidos de Mariana, chegando até seu cérebro e causando total devastação. Ela pensa:
(…será que eu vou ter filhos? Será que era pra ser ele? Por que eu encontrei essa criatura? Eu não sou nada dele, e estou aqui sentada na porta da UTI esperando notícias… e talvez o único homem que me interessou na vida esteja prestes a morrer por que olhou para mim enquanto dirigia… e talvez a culpa seja minha, por ter jogado duro, por ter sido grossa, e burra, e uma anta. E talvez ele acorde sem lembrar quem eu sou… e talvez eu chore muito se essa mulher continuar fazendo essas perguntas.)

Mariana:
Não…

Mulher:
Ah. Pena…

Mariana:
E você? Por que está aqui?

Mulher:
Sei lá…eu faço isso.

Mariana:
Isso o que?

Mulher:
Eu vou em hospitais conversar.

Mariana se afasta um pouco, julgando estar falando com uma doida.

Mariana:
Como assim?

Mulher:
Eu perdi minha familia inteira de uma vez.

(silêncio)

Mulher:
Foi um acidente terrível e eu passei muito tempo dentro de hospitais, indo de quarto em quarto, meu marido, minha filha, meus filhos…tentando dar conforto para todos eles…E nunca me senti tão sozinha.

Mariana fica sem palavras.

Mulher:
O problema nem era de dia. De dia chega visita, parente, amigo, todos dizendo a mesma coisa: “se precisar de alguma coisa…” Mas o que eu precisava ninguém podia me dar, que eram eles todos dentro da minha casa, com esperança de futuro, barulho, briga, tv ligada, conversa, música!… E à noite ninguém aparece. A noite é enorme, interminável, pesada. Aí que eu sofria, que eu me lamentava, que eu chorava...

Mariana:
Que triste…

Mulher:
É. E quando tudo acabou, e as noites lá na minha casa passaram a ser vazias e tristes, eu resolvi que devia confortar as pessoas que estavam passando o que eu passei. Então, todas as noites eu saio de casa, com café e biscoitos, e faço visitas em vários hospitais.

Mariana:
Que coragem.

Mulher:
Não...É o meu jeito de dividir a dor.

Mariana fica olhando para aquela mulher, com pena dela, com pena se Daren, com pena de si mesma, tenta segurar o choro mas não consegue. A mulher acomoda a cabeça de Mariana em seu colo
Mulher:
Isso…É disso que você precisa…Pode chorar.

Amanhece e Mariana está dormindo nos bancos do corredor do hospital, sozinha. Ela acorda assustada e vê que o movimento está voltando ao normal. Serventes com carrinhos servem o café da manhã nos apartamentos, médicos transitam, enfermeiras correr para lá e para cá. Ela esfrega os olhos, pega dentro da bolsa os óculos escuros e vai até a enfermaria pedir notícias.

Mariana:
Oi, você sabe a previsão e saída do Deren Ross da UTI?

Enfermeira:
O rapaz grandão, do acidente?

Mariana:
É.

Enfermeira:
Ele foi pro apartamento.

Mariana:
Nossa! Quando foi isso?

Enfermeira:
Ha umas 3 horas.

Mariana:
(empolgada, saltitando)
Ai que bom! Que ótimo! Qual apartamento?

Enfermeira:
302.

Mariana:
Obrigada.

E sai correndo pelos corredores.

APARTAMENTO 302 :
Mariana abre a porta devagar. Uma enfermeira está arrumando o soro e tirando a pressão de Daren, que está monitorado.
Mariana:
(sussurrando)
Oi.
A enfermeira sorri.
Mariana:
(sussurrando)
Ele acordou?

Enfermeira:
Não…enquanto não desinchar o doutor vai manter o coma.

Mariana:
(decepcionada)
Ah…droga. Mas pelo menos não está mais na UTI.

Enfermeira:
Melhor né? Agora ele pode ficar aqui, pertinho de você.

Mariana sorri novamente sentindo o turbilhão que martela sua cabeça: “pronto…mais uma me casando.”
Quando a enfermeira sai do quarto, Mariana se aproxima da cama. Ela fica observando cada detalhe do rosto de Daren. Ele tem alguns cortes, curativos, mas seu nariz e boca perfeitos continuam perfeitos. Ela passa a mão em seu rosto, pescoço, ombro, braço…segura a mão de Daren e leva até seu próprio rosto.

Mariana:
Fica bom Daren…por favor…a gente começou mal. Mas foi só o começo…Você tem que sair dessa pra gente se acertar.

O tempo passa ao rítmo do equipamento de monitoração cardíaca. O bip ritmado do coração de Daren vai, aos poucos, levando Mariana para um sono profundo. Ela se acomoda na poltrona que puxou para junto da cama. Sua mão na mão de Daren, sua cabeça apoiada na beira da cama. Nada acontece. Silêncio dentro e fora dos pensamentos de Mariana.
Mariana acorda num pulo ao ter seu sono interrompido por uma voz que parecia vir do além.

Voz feminina:
Olá?

Mariana:
O que?

Ela leva algum tempo para se situar. Confere o lugar para ter certeza de onde está. Vê o quarto do hospital, os equipamentos de monitoração, Daren. Arruma os cabelos com as mãos…

Mariana:
Nossa…dormi.

Continua olhando em volta e vê finalmente a dona da voz. Um mulher de trinta e poucos anos, cabelos vermelhos bem tratados, calça preta, camisa branca, botas. À primeira vista, uma executiva mega bem sucedida, parada no meio do quarto, segurando a bolsa e fitando Mariana nos olhos.

Mariana:
Oi.

Mulher:
Oi.

A estranheza da situação é mais do que contrangedora.

Mulher:
Você é…?

Mariana:
Não não…não sou não… só uma amiga…ele bateu o carro na frente da minha casa, e…

Mulher:
Muito prazer. Laura.

Mariana fala indo até o banheiro
Mariana:
Prazer Laura. Desculpa o meu estado. Passei a noite aqui, nem voltei pra casa..devo estar um lixo…

abre a porta e se olha no espelho.

Mariana:
Nossa…que horror…

Laura:
Imagina…mas agora que eu cheguei você já pode ir.

Este comentário congela Mariana em frente ao espelho. Por um segundo ela se sente como uma leoa vendo outra fêmea se aproximar de suas crias.

Mariana:
Como?

Laura:
Pode ir. Você não precisa se incomodar com isso. Eu já cheguei. Quando ele tiver alta, ele dá notícias aos amigos.

Mariana:
Você deve estar brincando…

Laura:
Não.

Mariana:
Ele bateu o carro na frente da minha casa. Quem veio de ambulância com ele fui eu. Quem recebeu a notícia de que ele estava em coma, fui eu. Quem passou a noite esperando ele sair da UTI fui eu. E eu VOU sim estar aqui quando ele acordar.

Laura:
Eu agradeço demais por você ter feito tudo isso, e entendo que você se sinta culpada ou queira ficar, mas não precisa...errr…como é mesmo o seu nome?

Mariana:
Mariana.

Laura:
Mariana…você pode vir visitar, é claro, mas o hospital só permite um acompanhante e o meu lugar é aqui.
Mariana:
Desculpa…eu to cansada, eu esqueci o seu nome …

Laura:
Laura. (pausa) Ross.

Mariana:
Então Laura…eu vou pra casa, mas eu volto. Vou ficar aqui todo o tempo que eu puder. Eu não vou deixar o Daren de jeito nen….Ross? Laura…Ross?

Mariana engole em seco.
Mariana:
Você é…?

Laura:
(tranquila e acertivamente)
Mulher do Daren.

Mariana:
Claro… imagina.. que louca eu… Laura, a mulher do Daren. Lógico!… Desculpa.

Mariana começa a juntar suas coisas. Chaves, bolsa, celular, casaco…

Mariana:
Desculpa… Eu to cansada demais… não estou mais raciocinando, nem lembrando as coisas direito…esqueci…bom…
O embaraço de Mariana transborda no excesso de gesticulação, como uma bailarina atrapalhado, sem saber se pega a bolsa, se larga a bolsa, se se aproxima ou se afasta…

Laura:
Tudo bem?

Mariana:
Não… quer dizer… tudo. Claro! Só o susto que foi grande demais… do acidente…é. Do acidente.
Eu tava olhando…ele lá em baixo... nossa horrivel! (pequena pausa) Preciso descansar mesmo, comer, dormir…né?
Laura:
Você veio de ambulância…quer que eu mande meu motorista te levar?

Ela vai andando de costas para a porta, vendo Daren ali na cama, e Laura – toda perfeita – de pé, parada o lado dele, olhando para ela…

Mariana:
Não!…nossa…não. Deixa. Eu pego um taxi, um ônibus, eu… já vou.

Mariana passa pela porta, atrapalhada, desnorteada.

Laura:
Mariana?

Mariana volta.

Mariana:
Hein.

Laura:
Obrigada por tudo.

Mariana:
(segurando as lágrimas)
Imagina…nem foi nada. Tchau.

Ela deixa o hospital no passo mais apressado que é capaz de aguentar sem correr, cabeça baixa, bolsa e casaco embolados nas mãos, abre a porta de vidro do hospital sem olhar para trás, continua caminhando no mesmo rítimo frenético de quem quer que o mundo exploda atrás de si, sem ser atingida pelos estilhaços. Atravessa a rua correndo, anda quase dois quarteirões, pára num sinal vermelho, aperta insistentemente o botão de pedestre socando o botão de tanto ódio, e termina por se descontrolar numa cena melo-patética: Mariana deixa a bolsa e o casaco cairem na calçada, encosta no poste, deixa seu corpo descer até o chão…e chora.

Continua…

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