domingo, setembro 26, 2010

_pequeno conto de inverno


A noite estava fria quando a Fêmea X conheceu o Macho Y.
Os dois eram de tribos diversas, divergentes, quase opostas, mas nem isso nem o frio impediram que os dois se apaixonassem instantaneamente. Na língua dele, este não era exatamente o caso, mas ela também não queria muito saber como a tribo dele chamava "amor à primeira vista". Devia ter algum nome, já que era uma tribo cheia de leis e regras misteriosas. Quem se importa?
Ela vinha de uma tribo livre, de fêmeas que não se aproximam de macho algum se não o quiserem muito...dificilmente seria capaz de notar se não houvesse sentimento da parte dele. Mas havia.
Foi intenso o encontro de X e Y.
Ele declarou sua devoção, mostrou-se por dentro e por fora, cumpriu o ritual da paixão sem deixar dúvidas de que a queria até mais do que ela a ele.
Mas tribos divergentes são tribos diferentes: ela côncava, ele convexo. Ela luz, ele reflexo. Ela entrega, ele...oh céus...ele muito complexo.
Quem poderia entender os habitantes daquelas bandas?


Do nada, o Macho Y voltou para sua tribo sem que a Fêmea X tivesse tempo de evitar. Mas deixou rastros. Incoerente como só ele, não soube apagar o cheiro e as pegadas que deixou pelo caminho. Por instinto - pura liberdade - ela seguiu sua sombra até os limites da tribo dos Ypsilons...para nada encontrar. Só o cheiro e as marcas no chão... nada mais. Não havia tribo, não havia...simplesmente nada havia.
Desolada, a Fêmea X voltou para sua aldeia sentindo a dor das asas cortadas.
Ele desapareceu no ar como um perfume que perde a essência... do qual ela já não é capaz de lembrar.

End of story.

quinta-feira, setembro 23, 2010

_presente


O que eu quero de presente? 
As pessoas perguntam e eu não sei a resposta. O que será que eu não tenho? Preciso fazer as contas....deixa eu ver...
Eu tenho a vida que eu quis, tenho pernas que me levam...Pernas me levam? É a imaginação que me leva, e me leva todos os dias pra onde eu quiser, mesmo que ninguém mais queira. Tenho essa cabeça, completamente descompensada, que dá risada sozinha da vida que eu escolhi. Ri dos dias, ri das coisas, ri do cheiro que a vida tem. Tenho esse coração debilóide e dramático que ama mais do que o amor aguenta e sonha até o último cantinho escondido do universo dos sonhos....e delira.
Eu tenho os cheiros das coisas que eu gosto e as coisas que eu gosto também, que não são tantas. 

Às vezes as pessoas dizem que é difícil me dar presentes porque eu tenho tudo. Mentira...eu não tenho tudo o que se pode comprar. Eu tenho tudo o que se pode querer. E o que eu quero não é o que os outros querem. É bem mais simples, bem mais barato, nem tem pra comprar, acredite.
Se eu for predir presente, vai ter que ser "presente". Presente é aquilo que se tem agora, que se vive agora, e que se guarda para sempre porque não é esquecível. Isso pode vir numa caixa ou no vento . Pode ser uma palavra ou um objeto...pode ser nada se vier com um olhar, um beijo, um abraço bom.
Presente é o que te faz viver, e vida é o único presente que me interessa.
Não quero gadgets, não quero roupa da moda, uma bolsa de marca, um sapato, uma jóia. Não...wait! Eu quero uma jóia sim, mas dessas que não se perdem, que não derretem, que não se enterram em baús de tesouro, porque só é possível guardá-las na alma.
Eu quero essa pedra rara, esse tesouro inteiro que são as pessoas que me cercam, encrustradas na vida que me cabe, cravejadas de amores que nunca passam.
Então, pensa como é fácil me dar um presente: uma flor arrancada de um jardim, um papel recortado, um bilhete feliz, uma pedrinha de um lugar bonito, uma foto do céu... 
Se em algum momento do dia, em algum lugar do mundo, alguém pensou em mim e sorriu...bingo! Este é o presente que eu quero.
Uma vez ganhei uma caixa de fósforos que tinha um único palito, e nele estava escrito "agora". 
É isso...agora é tudo o que se tem. O bem mais valioso: o presente. 
É o que eu quero.





quarta-feira, setembro 22, 2010

_invisível


E se você fechar os olhos? Tenta só uma vez, para eu poder mostrar o que eu vejo.
Olha as luzes lá embaixo, consegue? Desse lado luzes vermelhas, como uma grande cobra sem fim...do outro elas são brancas. Os reflexos na água, as núvens no vidro...
O Oeste é onde eu estou. Não...estou aqui agora. 
Sente o vento frio no rosto? Sente o calor na pele? E o gosto? Halls, café...
Fecha o olho...não olha agora.
Não deixa o tempo passar...sente o que eu quero mostrar.



( feche os olhos)

sábado, setembro 18, 2010

_a boina

Mercedes & Felipe
Por volta de 2005, eu e o Felipe Belão (@belao) éramos loucos - não que hoje sejamos normais - e escrevíamos contos no scrapbook do Orkut. A regra era: cada um escrevia uma parte, sem jamais combinar o tema ou o rumo da história, e postava no Orkut do outro. 
Aqui vai um deles: Conto Scrapiano #4

(Me)
É inverno em Curitiba e a Rua do Rio não tem mais a mesma cara.
Nem o frio é mais o mesmo. Hoje o frio é pequeno, não tem a mesma elegância, nem precisa mais de tanta roupa. Qualquer casaco que tenha bolso ajuda, luva já é coisa rara, no máximo um cachecol. Na infância era preciso ceroula, duas meias, a calça do pijama por baixo do uniforme, “japona”, "galocha"...

Ele anda todos os dias até o trabalho e sabe dizer a temperatura só pela cor do céu. Sabe a hora pela posição do sol. Sabe a velocidade do vento pelo movimento dos chorões.
Todos os dias o mesmo caminho da Júlia da Costa até a praça Ozório.
Conhece as esquinas onde o vento levanta a saia das meninas – das que ainda usam saias. Conhece o tempo dos sinaleiros. Conhece os horários de cada porteiro, de cada comprador de jornal da banca da Visconde de Nácar. Conhece os motoristas de táxi, os garis e a velha que nunca tirou os bobs do cabelo. Só não conhece a moça de boina que sai apressada do táxi gritando com alguém no celular.

(Felipe)
Ela não conhece a cidade. Não gosta de frio de nenhuma espécie, muito menos daquele. Uma peça de teatro. Isso era tudo que a atraía àquele lugar. Ela sabia que o texto era péssimo e a direção medíocre. Porém, o dinheiro compensava até o frio e a boina ridícula que estava usando para lhe conferir um "ar artístico".
Direito. Odontologia. Engenharia. Sempre sonhou em estudar pedagogia. Queria ser uma professora certinha e exigente, até recatada. Sempre se considerou tímida. Mal humorada. E o primeiro sujeito que avistou logo que desceu do táxi a fez questionar ainda mais sua profissão, o frio, sua vida, sua boina, seu celular que não parava de tocar.
- Meu troco, seu filho da puta!
Carioca. Ela não conhecia os taxistas do aeroporto Afonso Pena. Voz estridente. Ela deixou o diretor medíocre da peça de teatro de texto péssimo surdo com o grito. Curiosa. Ela olhou pela segunda vez para o sujeito do outro lado da rua. Curitibano. Ele retribuiu o olhar com um pré-julgamento cheio de censura e antipatia.

(Me)
“Carioca. Tinha que ser pra usar essa boina ridícula. Deve trabalhar com cinema e achar que é o máximo. Elas sempre gritam! Chegam aqui achando que todo mundo é burro, que podem tratar todo mundo com essa superioridade. Ou chamam de “BEM” , ou de filho da puta! Todas pseudo-intelectuais. Todas feias de bunda boa.”
Mas nem toda a antipatia curitibana podia impedi-lo de dar uma segunda olhada, já que seria óbvio uma boa bunda ali, e ninguém é de ferro.
“Nessa esquina venta muito. Bem que ela podia estar de saia”
- Hey! Você!
Braços levantados, olhando por cima dos carros, ela acena para ele.
“Tinha que aparecer. Grita mais, ô perua! Vai me pedir o que? Pra carregar as malas?”
Ele aponta para o próprio peito, olha para trás antes de pagar o mico de descobrir que ela chamava um outro qualquer.
- É! Você! Vem aqui um pouco!
Ele pára no meio fio, espera alguns carros passarem, testa franzida, já de mau humor.  
“Vou perder a hora por causa dessa carioca de boina”
Atravessa.
- Quem é você? – pergunta
- Eu? Quem é você, que já chega do aeroporto gritando na rua?
- Desculpa. Aquele cara foi embora com o meu troco.
- Quer que eu corra atrás dele?
- Não. Quero que você vá ao Teatro hoje à noite.
- Porque eu cometeria essa loucura? – sorriso sarcástico nº 5
Ela a tira da bolsa um convite para a peça ruim de texto péssimo.
- Porque eu estou convidando e você deve ser educado.
Ele pega o convite, olha com descaso.
- Só um?
- Eu convidei VOCÊ. Sozinho e desarmado. Chega antes pra tomar um drink.
E diz isso virando as costas, arrastando a mala enorme pela rua, atendendo o celular que não para de tocar.

(Felipe)
Uma hora antes da peça, ele ainda estava indeciso. Pensativo de cueca e meia preta. Imagem que combinava perfeitamente com sua barriga de cerveja e com seus joelhos grandes demais. Olhava no espelho e a mera lembrança da boina o excitava. Vestiu seu melhor terno. Pensou com desprezo no teatro. Lembrou-se das pessoas que pensavam que podiam mudar o mundo com peças ruins repletas de críticas sociais ou políticas. Necessárias ou não, odiava críticas. Gravata vermelha. Perfume barato. Conferiu se trancou a porta duas vezes. Chave no bolso esquerdo sempre. Carteira no bolso direito quase sempre. Seu carro era velho. Suas rugas já não lhe conferiam apenas olhar experiente. Sua vida passava rápido e ele se movia devagar.

Teatro. Inesperado bom humor. Pseudos-intelectuais. Ela já estava esperando. O batom mais vermelho que a gravata dele. A boina ridícula continuava no lugar, escondendo suas madeixas com dez tonalidades diferentes do mesmo loiro. Tentou sorrir, mas achou aquele terno terrível. Ele achou tudo nela perfeito, embora não fosse.
- Viu só! Tá pra nascer o homem que nega um convite meu.
- Só vim pelo drink que você prometeu.
- É mesmo? E o que você quer tomar?
- Cerveja.
- Cerveja não é drink. Além disso, só tem vodka com menta.
- Então por que você perguntou?
- Só pra saber o que você queria. Agora sei o que você queria e sei o que você vai tomar.

Sentiu-se velho demais para mandar uma atriz tomar no cu.

(Me)
O drink chega. Ele olha aquela coisa verde com a descrença de um gato frente a um osso.
- Quem inventa uma bebida verde?
- Não adianta. É o que temos aqui.
- Alguma superstição?
- Não, querido. Bom gosto.
- Esses lugares são ótimos pra quem quer comprar óculos. Olha só... É como mostra de cinema iraniano...filmes péssimos, excelente desfile de óculos modernosos!
- Do que você gosta?
- De sexo. E você?

A gargalhada dela foi ouvida em todo o quarteirão. “Se rindo é esse escândalo, imagina na minha cama...”
Ela, subitamente séria, olhou nos olhos dele. Por um momento ele sentiu a espinha gelar como se ela tivesse escutado seu pensamento. Tremeu de medo de olhá-la nos olhos novamente.
Alguém fez um sinal, ela respondeu com o olhar, debruçou-se na mesa deixando que o decote quase o fizesse engasgar:
- Tá na minha hora. Sobe pro camarote e me assiste. Depois me espera.
Há milímetros do ouvido dele, sussurrou:
- Eu quero ver do que você gosta...
Gelado e ansioso, ele assistiu à peça de texto péssimo, pretensioso, medíocre. Teve sono, teve tédio, usou a chave que estava no bolso esquerdo para limpar debaixo das unhas, ficou estupefato com a sensualidade e a falta de talento da sua nova amiga. O tempo não passa, e ele não para de pensar em mostrar para ela do que gosta, mas não entendeu ainda o que ela quer com um velho barrigudo de última que achou na rua.

(Felipe)
As cortinas vermelhas, velhas e cheias de mofo se fecharam.
- Curitiba realmente é a cidade maravilhosa do mofo – pensou ele em voz alta.
E, como num passe de mágica, ela misteriosa e sua boina ridícula apareceram ao seu lado. Ele não sabia dizer quanto tempo passou. Por quanto tempo pensou. Durante quantos minutos o mofo, a peça medíocre e a sensualidade da desconhecida passearam pelos seus pensamentos. Apenas foi despertado por mais um sussurro provocante.
- Me leve pra algum lugar... agora.
Não havia resposta. Nada a dizer. Segurou a mão dela de maneira desajeitada, como quem não faz idéia do que fazer em seguida. Levou-a para seu carro velho. Encolheu a barriga. Colocou o cinto de segurança. Ela não. Lembrou que deveria ter aberto a porta para ela. Tentou imaginar o que fazer em seguida. Pensou quais seriam os movimentos certos. O que o James Bond faria? Lembrou que os James Bond´s de seu tempo já estavam velhos ou mortos. Tentou buscar exemplos nacionais e um dos mais decrépitos veio à sua mente: Tarcísio Meira. Procurou se concentrar em dirigir. Nada daquilo estava ajudando.

Os pensamentos dele mal permitiam que o carro seguisse pela pista certa. Ela colocou a mão em sua perna. Não parecia se preocupar com atores mortos, velhos ou vivos. A mão passeava. O carro seguia nervoso pelas ruas de Curitiba. Ele já não controlava seu raciocínio. Cortina. Mofo. Peça. Sensualidade. Tarcísio Meira. Boina. Porta do carro. Ruas. Trocar de marcha. Encolher a Barriga. A mão dela já não estava só na sua perna. “Por que diabos eu estou lembrando do Tarcísio Meira?! 

(Me) 
- Vamos ver o que você tem ouvido... 
Ela empurra a fita para dentro do toca-fitas velho, mas tem que segurar a mão dele que tenta impedi-la.
- “Three witches watch three Swatch watches. Which witch watch which Swatch watch?” 
- Que droga é essa?
Ele tira a fita, sem jeito.
- Um curso idiota de inglês. Nem é sério.
- Que tipo de homem é você?
- O pior!
Pega a mão dela e coloca de volta em sua perna.

No Motel barato, cheirando a tapete úmido e pinho sol, ele bate a porta, joga as chaves, encolhe a barriga, pensa se ela deve tirar a boina ou se aquela coisa ridícula pode dar um ar de filme francês à cena de sexo que ele tenta idealizar  sem saber ainda onde põe as mãos, o que diz, e como se livra da imagem torturante do Tarcisio Meira.
Ela começa a tirar a roupa e ele se atrapalha...não sabe se tira antes a camisa ou a calça, tem medo de ficar de cueca e meia e parecer um perdedor.  Anda pelo quarto desabotoando a camisa e apagando algumas luzes. Depois de uma certa idade e de uma certa circunferência, pouca luz sempre salva a dignidade. “Se ela me convidar pra um banho vai ver a minha barriga. Porque eles não colocam menos luz nos banheiros?”
No sistema de som precário do lugar, Maria Bethânia canta Cavalgada. Maria Bethânia sempre canta nos motéis baratos! O papel de parede descascado, o tapete úmido e queimado de cigarro, os lençóis amarelados e puídos, os quadros com figuras de mulheres feias, a TV em cima da cômoda descascada com gavetas falsas, a esquadria enferrujada da janela... vou cavalgar por toda noite...Por uma estrada colorida...Tarcísio...João Coragem...Tudo revela que será preciso dar muito de si para tornar esse lugar inesquecível.

(Felipe)
E como tornar o momento inesquecível pensando se a cama está limpa ou se o lençol foi trocado? Qual o sabão em pó mais apropriado para aquela roupa de cama? OMO? Estava sendo usado na medida certa? Na quantidade certa?
E, como se não bastasse, o espectro fantasmagórico de Tarcísio Meira ainda se fazia presente. Assim como a voz inconfundível de Maria Betânia em sua canção fervorosa.

Ela não se importava. Porém, para ele o cenário todo exercia uma influência diferente. Atrapalhava psicologicamente. Fisicamente estava tudo funcionando, afinal já fazia dez meses que ele havia parado de tentar contar qual foi a última vez que chegou perto de fazer sexo com alguém que não ele mesmo. Só que o lençol, o ex-galã de televisão, a cabeleira da Maria Betânia formavam um conjunto poderoso. Vinte minutos.
- Não pára!
Aliás, formavam um obstáculo. Trinta minutos.
- Vai continua!
Uma verdadeira barreira intransponível. Uma hora.
- Oh, meu Deus!
Uma muralha que separava o sexo do prazer. Uma hora e meia.
- Ah!!!!
Ela gemia, gritava e parecia estar tendo a melhor experiência pseudo-artística-multiplorgásmica de sua vida. Ele apenas colaborava com o pênis e uma atuação esporádica da pior qualidade tipicamente curitibana. Foi então que ele percebeu. Não era o lençol ou o Tarcício ou a Maria Betânia. Era a boina. Era ela. Era a falta de carinho. Não havia o tal do sentimento e ele sentia falta dele. Não sabia o motivo, mas ele sentia falta da porra do sentimento. “Era o que me faltava! Meu pinto ficou emotivo depois de velho!”
- Ahhh, que foi que você disse?
- Disse que vou gozar.
Boina. Tarcício Meira. Motel Barato. Lençol sujo. Maria Betânia. Pênis romântico. Barriga encolhida. Ela desfalecida. Ele indignado e mentiroso. O preservativo: vazio."

(Me)
Fumaça de cigarro.  Silêncio. Aquele lugar ficava cada vez mais horrível. Agora que a ansiedade e o tesão se foram, ele já nem encolhe mais a barriga e começa a reparar na pintura velha do teto, no descascado das paredes, na decoração pobre e tosca. Dá para imaginar que tipo de casal freqüenta este lugar.
Ela fuma olhando para a porta vermelha do banheiro.  Ele cheira o travesseiro.
- Que tipo de mulher  topa transar numa espelunca dessas?!
Ela sentou na cama indignada, cigarro no canto da boca, falando entre os dentes:
- O que? Você ta falando de mim?
- Não! Claro que não! Pensei alto...tava imaginando quem vem aqui... não você.
- Eu VIM aqui! Não vem tentar salvar a sua pele descarada! Onde mais um homem como você me levaria? Pra um hotel cinco estrelas?
- Calma, eu não quis te ofender!
- Tarde demais!
- Desculpa.
- Eu que não quis te ofender quando entrei por aquela porta! Também não quis te ofender quando vi seu terno horroroso! Nem quando você tirou a camisa. E pra não te ofender eu fingi feito uma atriz barata o tempo todo! E não falei nada!
- Mas você é uma atriz barata!
- E você é o pior tipo de homem que eu já conheci.
- Não te enganei.
- Cala a boca! Não sei onde eu fui achar uma coisa como você!
- Na rua.
- Não sei porque eu fui ceder!
- Ceder? Você que quis!
- Cala a boca! Você me ofendeu, eu digo o que eu quiser!
- Ta. Então diz no carro. Vambora.

(Felipe)
No carro, o silêncio. Ele se sentia sozinho. Não conseguia nem mesmo levar em conta a presença fria da mulher ao seu lado. Já não havia Tarcísio Meira que remediasse seu ódio e repulsa por aquela péssima atriz e terrível amante. Seu sangue corria ao mesmo tempo rápido e gelado.
Pegou um desvio. Andou uns quilômetros. Ela surpreendentemente calada. Já haviam falado o suficiente por uma noite de sexo. “Agora que o sexo acabou, quero o prazer.” O carro velho percorria estradas antigas. Ele lembrou do tempo em que era jovem.

Freiou bruscamente. Não chovia. A lua não se mostrava. Árvores. Silêncio. Nada para recordar. A lembrança teimosa do tempo de juventude dele. Seu sangue continuava correndo rápido e frio. Abriu a porta do carro para ela. Gentil. Abraçou-a por trás até ela sufocar. Seu corpo tremeu. “Os corpos sempre tremem.” Seu último suspiro veio logo. Foi pesado. “Todos os últimos suspiros são pesados.” A lembrança de sua primeira amante misturada com a imagem da mulher de boina saindo do táxi. Prazer finalmente.
Quando soltou o corpo, a queda foi inaudível. Ele olhou para baixo. A imagem fez seu sangue frio parar. Não havia corpo. Não havia mais atriz. Não havia amante. Ele só enxergava sua própria solidão."
 

FIM
 

Felipe e Mercedes aqui
Delírio - outro conto scrapiano parte 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, Final
Felipe Belão aqui

sexta-feira, setembro 17, 2010

_ritual do fim

.
A vida antigamente era mais difícil numa série de coisas, mas em outras era milhares de vêzes mais fácil. Principalmente no que diz respeito aos relacionamentos.

Falar e ver a pessoa amada não eram coisas tão simples, nem tão complicadas. Deu pra entender? Eu explico:
As pessoas se conheciam no bonde, no ônibus, na festa, no clube, whatever. Fato: elas se conheciam assim, fisicamente, olho no olho. A primeira impressão era realmente à primeira vista. Uma ouvia a voz da outra, sabia a altura, o tamanho, os atrativos e os nem tanto, sentia o cheiro. Sabe assim? Como os homens da caverna? Coisa antiga...
Pois bem. Como fazer para se encontrar de novo? Pouquíssimas possibilidades. Nem sempre alguém passa pelo mesmo lugar duas vezes em uma semana, a não ser quem se conhecesse no trabalho -- mas não se come a carne de onde se tira o pão (cof cof...eu nunca!).

Depois tinha o telefone. Era preciso descobrir o número da pessoa e, para tal, bastava procurar na lista telefônica de assinantes, caso tivesse dado tempo de saber o sobrenome . Depois de conseguir este tesouro, telefonar era uma coisa meio cara, então ninguém abusava. Falar todo dia já era uma coisa exagerada, mais de uma vez por dia era coisa de gente louca. Sem celulares e mensagens de texto, era impossível mandar um  :)  de vez em quando para se fazer presente.
Em compensação, naquela época, se um homem aparecesse de surpresa na porta da casa ou do trabalho da moça, ou se telefonasse para a casa dela, ele não era considerado um stalker, ao contrário, era uma demonstração de interesse e afeição apreciada até. E as pessoas escreviam cartas. Isso: Cartas! O carteiro não trazia contas, trazia CARTAS. Para as contas, existiam os carnês -- que não eram enviados pelo correio.

Pois bem...um namoro envolvia cartas, bilhetes, fotografias, presentinhos fofos. E o final de um namoro envolvia devolver, rasgar ou queimar cartas, bilhetes, fotografias e presentinhos fofos.
O ato de rasgar era a grande catarse. Depois de lágrimas sem fim, dias de sofrimento ou de raiva, você simplesmente abria aquela caixa, remexia tudo, escolhia meia dúzia de coisinhas para guardar - isso entre soluços e ataques de fúria - e rasgava página por página, envelope por envelope, jogando toda a sua energia e todo o seu sofrimento neste ato. Um ritual de luto. É como enterrar seus mortos.
O luto é necessário para a aceitação. Depois do enterro, você chora, se descabela, mas não encontra mais o morto andando por aí. Depois do enterro, você espera lá seus sete dias, manda rezar uma missa ou o que quiser...e está liberado do sofrimento. Kind of.  Rasgar cartas e fotos é exatamente a catarse do luto dos relacionamentos. Queimar então...maravilhoso. Depois deste momento, você é oficialmente uma pessoa mais leve.

Pois bem...ERA!
Porque hoje não tem como. As pessoas terminam e continuam vendo o nomezinho da criatura ali na janela do messenger com uma bolinha verde que praticamente diz "disponível, mas não para você". E fotos que mudam todos os dias. E Facebook, Orkut, Twitter, notícias que não param de chegar. São lembranças postadas por todos os cantos da web e ainda tem o grande cemitério das almas perdidas -- que se chama Google -- capaz de achar as imagens de vocês dois juntos que aquela tia dele postou.
Se ela pinta o cabelo, ele vê. Se ele começa a malhar, ela repara. Se um dos dois namora, o status muda como um tapa na cara.
É a vida eterna dos amores perdidos.
Quando você termina um relacionamento, o histórico do messenger também desaparece? E o do Skype? Não...você pode encontrá-los bem na hora que já estiver se recuperando, reler tudo e ter uma master recaída. E os e-mails? Você pode deletá-los todos, mas ao contrário do ato de rasgar, o que fica não são fragmentos de declarações de amor em forma de papel picado...é o vazio. Deletar não cumpre o ritual do luto.
A internet é a volta dos mortos vivos. Ex-namorados-Zumbis. Ex-mulheres-imortais. Eles se vão, mas nunca partem. E se bebem, entram de madrugada pra escrever mensagens saudosas que não vão lembrar de manhã. Como lidar?

É preciso criar outro ritual de luto para preservar os corações dessa bagunça. É urgente!






(Eu guardo as cartas e rasgo as fotos)

quarta-feira, setembro 15, 2010

_perfect profile

Achei hoje esse perfil de um blog antigo e vou te contar que ainda me cabe como uma luva.


Minha cabeça é o big-bang do pensamento alheio. Roubo o que você pensa e não sabe dizer... Assim eu sou você e você jura que eu sou demais!
Odeio o ar da mediocridade. Odeio o cheiro da falsa modéstia. Odeio o perfume barato dos pseudo-intelectuais.
Gosto das pessoas. Gosto de ouvir pessoas. Falo mais do que a língua e sou dona da verdade.
Ela é minha e fim. Não se discute! Shut up!

Ha!

terça-feira, setembro 14, 2010

quinta-feira, setembro 09, 2010

_pode?

.
Pode? Não, não pode. 
Tem muita coisa nessa vida que não pode e a gente sabe muito bem. 
Não pode matar. Não pode maltratar as pessoas. Não pode fazer aos outros o que a você não quer que façam a você. Não pode roubar. Não pode ser desonesto. Não pode um monte de coisas porque não é justo, não é correto, porque sem ética a gente não sobrevive nesse mundo que ainda é selvagem, porque a nossa natureza é selvagem e isso eu não vejo como mudar.

Mas tem coisas impossíveis de controlar. Você simplesmente não manda nelas e, acredite, tudo seria muito mais fácil se a vida fosse controlável.
Se fosse controlável ninguém ficaria doente, ninguém morreria de coisas incuráveis, ninguém jamais ficaria triste, a gente aceitaria a morte -- não importa o que ou quem morreu. 
Quando uma pessoa vai desta para a outra vida, quem fica sente que o chão lhe foi tirado. Fica um vazio imenso que não pode ser preenchido por nada...nada vivo, nada material, nada. 
Quando um amor acaba, acontece a mesma coisa, com a única -- e não tão grande -- diferença de que o grande buraco será preenchido mais cedo ou mais tarde, mas ali há de ficar uma cicatriz.
Quando uma promessa de alegria se desmancha no ar é um pouco diferente: era só uma ilusão, você sabe disso, mas dá uma tristeza infinita e passageira. Assim: tem dias que é infinita, tem dias que nem existe. A alegria ilusória muitas vezes é bem mais intensa do que a felicidade real. Ela vem forte, ela gera expectativas, ela tem cheiro e gosto de promessa de vida. Aí, quando se desfaz, você tem a impressão de que não é merecedor de algo tão bom. Não é como a dor da perda...é como a dor de não ter tido.

Aí, nos dias em que está triste, você vai buscar a lembrança da ilusão, porque ela ameniza a dor das outras perdas. 
Pode isso? 
Pode sim...com certeza pode.