quinta-feira, novembro 23, 2006

A lenda da chuva

Lembrei de uma história que escrevi quando criei o inicio do romance entre Clarence e Mike no roteiro do Touching the Clouds.
Era uma noite de chuva, a luz acabava, Clarence contava para o Mike uma historia de infância.
Pra contar esta história é preciso contar antes uma outra. A minha:
Lembrança boa é coisa que vai sendo construída pela família. Não todos os dias, mas em dias especiais. Assim eu entendo hoje, depois de ter visto a vida passar, e tendo as lembranças como referência: um tipo de bússola que te conta de onde você veio, pra que você não se deixe perder no caminho. Pode ser que tudo venha com um pouco de fantasia. Mas pra que servem as mentes infantis, senão pra trazer para o mundo adulto um pouco de magia?
Uma das minhas lembranças mais nítidas da infância são as noites de tempestade em que a luz acabava.
Minha mãe era uma morena linda, com traços de cigana, cabelos ondulados muito pretos, olhos grandes de jabuticaba e a sobrancelha mais imponente que alguém já teve. Cara de mulher poderosa...Sempre muito austera...Mas se havia um momento em que a austeridade desaparecia, era na hora do medo.
Medo foi sempre um sentimento respeitado na minha casa graças a ela, ex-criança medrosa.
Com o pavor que tinha do mar, ensinou os quatro filhos a mergulhar, nadar e pular onda. (Só soubemos deste medo depois de grandes). Com o medo que tinha de espíritos e fantasmas, nos ensinou a ser fortes e destemidos.E a rezar. E do medo que tinha de escuro criou as historias e fantasias que até hoje dançam em nossas cabeças.

Em noite de tempestade, minha avó rezava para Santa Bárbara sem parar, mas ela mesma vivia dizendo que as pessoas só lembram de Santa Bárbara quando troveja! Rezava e fechava as janelas, mostrando pras crianças da casa que algo terrível estava pra acontecer.
Uma noite, caiu uma tempestade. Muito trovão, muito vento, chuva forte...
Eu estava no quarto, me preparando pra dormir quando a luz apagou e eu fiquei em pânico! Comecei a chorar alto e chamar a minha mãe. Nessas horas de medo, parece sempre que a família toda fugiu e o mundo vai acabar no escuro! Mas não...Minha mãe aparecia do nada, me levava pela mão até a sala de jantar onde já tinha acendido velas.
Sempre uma visão mágica essa. As chamas tremulando...A luz e as sombras se mexendo...Os móveis não parecem os mesmos...A sua mãe fica mais bonita...
Ali, naquele lugar meio mágico meio misterioso, ela me explicou os porquês da tempestade.

Eu cresci e preferi assim:
Era uma vez a Chuva. Uma mulher linda, jovem, com cabelos feitos de longos fios de prata esvoaçantes, enfeitados de cristais.
Ela amava um homem chamado Trovão mais que a tudo no mundo. Ele - Trovão – era lindo: cabelos claros de luz, corpo forte, alma iluminada, sorriso radiante. Ele amava a Chuva e seus cabelos de prata mais que à própria vida.
Um dia, o Trovão viu a Chuva sorrindo para o Sol, que se exibia, tentando conquistá-la. O Sol, esse egocêntrico, que acha que tudo gira em torno de si, quis a chuva só pra ele. Para impressioná-la, criou um enorme arco-íris, o maior de todos, o mais perfeito e deu a ela de presente.
Vendo aquilo, o Trovão percebeu que não seria capaz de dar a ela nada tão grandioso. Sentiu a mãe de todas as raivas! Uma tristeza profunda...Um ciúme horrível! Se não amasse tanto seria capaz de explodir o universo!
Mas seu amor pela Chuva era tão gigantesco, tão maior que o ciúme, que ele não podia sequer pensar em machucá-la. - Nem a ela, nem a nada que a agradasse. Assim, o Trovão explodiu em raios, relâmpagos, e luz, fazendo muito barulho e perdeu sua forma para sempre.
A tristeza da chuva será eterna. A saudade enorme. Mesmo que trovão a perdoasse eles não poderiam ficar juntos jamais, porque ele não poderia voltar a ter sua forma humana.
Assim, muito tempo depois, a Chuva casou-se com o Sol que, sabendo-se culpado pela tristeza dela, nunca parou de tentar agradá-la.

Até os dias de hoje, os raios e trovoadas acontecem quando o Trovão está triste, tentando voltar à sua forma humana para matar a saudade que sente da Chuva.
Ela, ouvindo seu desespero, chora lágrimas de cristal e deixa voarem seus cabelos de prata.
Mas tudo se acalma quando o Sol prepara um lindo arco-íris e dá de presente à sua amada para que ela pare de chorar...


Texto escrito em Janeiro de 2005, baseado na Lenda da Chuva - parte da história "Thouching the Clouds" de 1997.
Foto antiga da minha mãe by Amaury Gameiro - 1954
Foto do guarda-chuva by MgMyself - 2005




9 comentários:

Alice Salles disse...

oi!
coloquei um link do teu blog no meu pra ficar mais fácil de te ler... beijos!

Alice Salles disse...

colocadíssimo!

Unknown disse...

ai ai ai AHAAHAHAHAAHAH
ISSO TÁ SENDO AGORA "AO VIVO" É?
AHAHAHAHAHAH

Anônimo disse...

Lindo!!!
Sua mãe não mudou nadaaa!!

Anônimo disse...

Lindo Met.
Que linda a mãe, né???
Quando vc fala do medo e de como a mãe fazia com a gente está exato.
Vc escrevendo cada vez melhor.
Beijos

Anônimo disse...

Mê,

Muito lindo!!! Não sei nem o que comentar...

Já tinha lido o texto no dia em que vc postou, mas não tive tempo de comentar.

Durante o final de semana, algumas horas de chuvas e trovões. Não consegui para de pensar neste texto.

Lindo! Lindo! Lindo!

Anônimo disse...

Que texto mais lindo!

Nem sei o que comentar!

Vc é uma pessoa muito especial.

Anônimo disse...

Coisas de Mãe!!!
Mas uma coisa me chamou a tenção: "Touching in the Clouds"... O primeiro roteiro que me fez chorar! Acho que foi o primeio texto seu que eu li, quer dizer, o início do vício!!!
bj

Anônimo disse...

Rafa,

é verdade...você tem uma vantagem de anos sobre os que andam por aqui.
Touching the Clouds foi em 97...o TPM em 2004. Você lê as minhas coisas há muito tempo.

Beijoca