quinta-feira, outubro 28, 2010

_sede (um conto de halloween)

Se você tem estômago 
fraco e a mente imaculada, 
não leia este post.


Era uma daquelas noites em que eu não podia esperar nada além de um sonho bom, já que nada  especial poderia acontecer.
Ah sim... aquele seria o cenário perfeito para um crime: um quarto de hotel de sonho - desses que os mortais só vêem em filme - a lua perfeita pintando de azul todas as coisas brancas da terra; a brisa fria e calma dançando com a cortina pálida numa dança lenta e quase sexy...e um olhar distante.
Mesmo no lugar perfeito, com o figurino perfeito, eu sabia que o toque dos nove travesseiros brancos espalhados na cama, seria a única coisa que eu sentiria durante o sono.

Talvez.
Se ninguém tievesse batido na porta, garrafa de Sake numa das mãos, a outra no bolso, um sorriso irônico, e uma sede enorme rasgando a garganta.
"Seu drink favorito."

Nem uma palavra em retorno. Só um meio sorriso. Mas ele sabia que devia entrar e encontrar um jeito de abrir a garrafa e mais cedo ou mais tarde, eu abriria um sorriso.
Fiquei em silêncio.
Eu o segui com os olhos quando ele entrou como se o lugar fosse dele. Ele sempre teve esse jeito no olhar que parecia dizer que eu era dele, e dele era tudo o que me cercava. Fechei a porta com um empurrão enquanto ele abria a garrafa com a faca que tirou do bolso.

"Que tipo de homem carrega uma faca?" -- pensei em dizer mas, antes que as palavras saíssem, lembrei que ele era esse tipo de homem. Talvez tivesse uma maior na mochila, quem sabe mais.
Ainda na porta, vi quando ele lambeu a lâmina antes de guardá-la. Fechei os olhos num suspiro mudo, só eu sei o que me veio à mente. Ou ele também, porque quando abri os olhos, ele estava sorrindo.

"Saudade?"


Saudade...do que mesmo eu teria saudade? De ter alguém ao meu lado na cama, fosse quem fosse -- e ele servia muito bem a tal propósito -- ou das coisas que eu sabia que jamais teria com outro, não nessa, nem em outra vida?

Ele pegou dois copos, serviu duas doses, me entregou um deles e levantou o dele num brinde.
Virei o Sake num só gole e estiquei o copo pedindo mais. Ele me serviu e continuou parado me olhando, sem se mover. O sorriso não era irônico...era um misto de ironia e admiração...era alguma coisa que me dava frio da barriga e medo. Cheguei a pensar que o Sake estaria envenenado ou que ele havia usado algum calmante, mas o medo passou quando lembrei que ele não tinha motivos para me dopar. Mais do que ninguém, ele sabia que não precisava de artifícios para me seduzir. E mesmo que houvesse dúvida, eu beberia, porque não passaria mais dez segundos sem saber o que ele faria comigo.
Este era o eterno jogo. Ele era perigoso, mas eu pagava pra ver. A confiança era cega, e era mútua. Se um dia eu não sobrevivesse, teria morrido tranquila.
Quebrei o silêncio, e o sorriso dele.

"Como você me achou?"
"Você deixa rastros."
"Não dessa vez..."
"Eu sinto o seu cheiro.
"

Eu atravessei o quarto rindo e fui até a janela. Sabia que ele me acharia mesmo que eu mudasse de planeta. Ele sempre achava...mesmo que eu tomasse cuidado. Ou talvez eu descuidasse num detalhe ou outro para apimentar a busca. Quem sabe?

"É impossível não seguir teu cheiro..."
-- ele disse me abraçando por trás e puxando para baixo a minha blusa de forma a expor meus ombros. Beijou minhas costas e a nuca, e eu tentei não me mexer, não respirar, não mostrar que morria de saudade daquela boca e daquelas mãos. Mas foi impossível. Num impulso, eu levei minhas mãos para trás, segurei suas pernas e o puxei para mim...senti a faca no bolso da calça. Ele interrompeu o beijo por um segundo e voltou a beijar minhas costas sorrindo.

"Saudade...eu sei."
Eu balancei a cabeça num não, mas estava mentindo: saudade sim.

Ele me virou e me beijou na boca. Os corpos colados, a blusa escorrendo pelo ombro, a barba roçando a pele, uma longa lambida no pescoço... e minha cabeça tombou para o lado, olhos em transe. Ele conhecia os meus sinais...
Senti a lâmina fria tocar minha pele e um suspiro profundo veio do estômago, numa contração forte. Ele sabia. Um corte. Nem raso nem fundo: preciso. A língua quente, o gemido...
Senti a faca fria na mão como um pedido urgente e mais do que rápido fiz um corte em seu peito e deixei o sangue correr. Ele se afastou para olhar, a boca suja de sangue me beijou novamente, depois guiou minha boca até o corte. O gosto morno indescritível do sangue era o que guiava a nossa loucura. Sempre. Mas naquela noite, seria diferente.

Joguei a faca na cama e ele sorriu extasiado. Era hora de matar a sede.
Sempre cortes discretos capazes de cicatrizar rápido sem deixar grandes vestígios, mas em lugares onde o sangue é farto...essa era a regra e essa era a graça de fazer amor -- nos lambuzando um no sangue do outro até o gozo, até o êxtase, até nem um de nós ter um único milímetro de pele limpa.

Mas naquela noite, seria diferente.
Enchi a banheira e o convidei para entrar comigo. Bebemos mais, nos beijamos mais...Por fim, descansamos. 
Ele deitou na banheira, eu montei sobre ele e ele entrou em mim. Enquanto fazíamos amor eu peguei a faca na borda e esperei o momento. Ele pedia que eu o cortasse e eu me recusava, dizia que não, ainda não era a hora, mas ele pedia de novo e de novo, e ficava mais excitado quanto mais a expectativa do corte crescia...e eu esperei e esperei...e veio o gozo... foi quando, num movimento rápido, eu fiz um corte profundo em sua perna, rompendo a femural e, num segundo golpe, levei a lâmina até a minha própria perna e fiz o mesmo.

O sangue tingiu a água quente, enquanto um prazer intenso nos tomava...

Nos beijamos uma última vez.



Happy Halloween!

domingo, outubro 24, 2010

_vácuo


Então assim...cansei de enrolar todo mundo. Cansei de inventar historinhas de amor e cartinhas e diálogos telefônicos. Cansei. Quer a verdade? Eu te dou.
A verdade é que meu cérebro tornou-se um grande buraco negro, de meses para cá. É como se eu tivesse entrado no olho de um furacão e agora só o que há é o silêncio do vácuo. 
Aqui dentro, nada se move. São só as grandes paredes brancas de núvens. Dentro delas tudo se mexe, a energia lateja, ventos furiosos se preparam para varrer a terra. Mas dentro - aqui onde me encontro - nada.
Não existe um pensamento que valha ser colocado no papel. Não existe uma idéia que não seja tragada pelo vazio em cinco minutos. Não há tempo, não há espaço, não há. Vácuo.
Há momentos em que penso em desistir. Penso em romper com as palavras, já que elas não querem colaborar. Penso em romper comigo porque não gosto mais do que eu escrevo.


...

Viu? eu ainda não consigo falar sobre o assunto de forma a me tirar do marasmo. As palavras chegam até o pulso, mas não continuam até as pontas dos dedos, para que eu possa escrevê-las. Estou presa.
Mas vai passar. Tem que passar.

Talvez seja hora de me colocar de castigo.


quarta-feira, outubro 20, 2010

Necessaire

.
O telefone toca de madrugada.
- Alô?
- Mê?
- Oi Ella...Tudo bem?
- Tudo e você?
- Que voz é essa? Ta triste?
- Triste não...
- Ta o que então?
- Acho que entendiada...meio decepcionada, sei lá.
- O que acontece?
- A necessaire...
- Xii...la maison est tombé!
- yep
- Necessaire no armário?
- 2012, amiga.
- Mas o que foi? Ele apareceu? Brigaram? O que?
- Não...quer dizer...ele já tinha resolvido que não podia blablabla, lembra?
- Lembro. Ele era um cara sério.
- Sério my ass.
- Sério sim...tinha milhões de motivos pra não ficar com você, se você não gosta de homem sério, não é problema dele, certo?
- Vai começar o sermão...Beijo, até.
- Não desliga!
- Não defende!
- Mas ele não tá errado...ele não podia ficar com você...não podia mesmo.
- Não PODIA! Passado! E agora cadê? Nem tem pena da necessaire que voltou pro armário. Ele não pensa mais em mim, Mê. Nem lembra da minha existência...me evita.
- Opa, opa...calma lá...se ele te evita ele pensa sim.
- Ah mané pensa...pensa nada. Se pensasse seria diferente. E não evita, errei a palavra: me ignora. Ta lá, bem vivendo a vidinha dele. E cadê a necessaire? Ta na bolsa? Não né? Então não pensa.
- Alguém mais, além de nós, sabe qual é a da necessaire?
- Sei lá...acho que todo mundo, quando tem alguém, carrega um kit de sobrevivência pro caso de ter que se arrumar no meio do dia, não?
- Sei não...todo mundo carrega primeiros socorros - base, demaquilante, rimmel, escova de cabelo - é normal. Mas não porque tem alguém. Só você deixa o kit em casa quando ta solteira... Mas você ta bem, ou ainda ta em crise de abstinência?
- Esse é o problema. Não to mais em crise. 
- Então não é problema...
- Mas alguém tinha que avisar pra ele...Mê, se ele demorar vai ser tarde..eu não quero. Vai dar trabalho me reconquistar.
- Ella! Para de ser louca! 1) ele não vai voltar. 2) não daria trabalho nenhum te reconquistar. 3) ele. não. quer. mais. você!
- Vai defender de novo?
- To defendendo VOCÊ, maluca! Enterra essa história que é melhor! Você já se abaixou tanto que mostrou a bunda, não sentiu o ventinho?
- Não lembro mais como era a gargalhada dele, Mê. E o cheiro dele saiu da minha blusa branca... lavei.
- Vou te internar.
- Please.
- Você não ouve o que eu falo, né?
- Não queria...
- Ella...por que você cismou com ele?
- Sei lá...só tem uma explicação...
- Qual?
- De menino..
- O que?
- Explicação de menino.
- Hahaha...fala.
- Amor de pica.
- Bah! Que coisa mais baixa...isso não é raciocínio de mulher!
- Eu avisei...
- Ai, jura pra mim que vai tentar outra explicação, pelo amor de deus.
- Ele tem a pegada do demônio, Mê...não tem como...ah!
- Hahaha! Você não existe...
- Mas é a única explicação viável. Vai dizer que é amor? Não deu tempo de amor. Não deu tempo de nada aliás...a gente nem fez nada...vai ver é isso mesmo. Meu deus, Mê! como ele OUSA me deixar com vontade e ir embora? COMO?
- Ha! Bingo! Você mesma respondeu: orgulho ferido, Dona Ella. Puro orgulho ferido! E depois? Se ele volta você faz o que? Pega o que queria e é a SUA vez de ir embora, isso?
- Eu nunca disse que era orgulho ferido.
- Não? "Como ele OUSA me deixar com vontade e ir embora"...disse sim!
- ...
- Agora sim la maison est tombé.
- Não, nem é nada disso...eu to triste mesmo. É que a paixonite tava me fazendo companhia, eu acho. Tinha alguém pra sonhar, tinha alguém pra pensar, tinha um e-mail pra esperar, alguém pra ligar. Agora babau...eu nem escrevo mais pensando nele, nada... uma droga.
- Ella...
- Ta...vai me internar. Vou ali matar meu orgulho ferido com álcool. Beijo
- Vê se não acha outro desse no caminho...
- To vendo que você me quer bem.
- Vai levar a necessaire?
- Nhé, beijo.



As amigas que eu tenho...


sábado, outubro 16, 2010

_escuro


.
Conforme eu passava a mão no fundo de areia branca, uma poeira linda, quase prateada, enchia a água de uma névoa misteriosa. A água era tão azul que eu parecia estar voando, e os brilhos da poeira branca pareciam estrelas num céu líquido.
“O que eu estou procurando?”
Parecia mesmo ser importante e eu nadava aflita, com medo de perder o fôlego enquanto passava a mão no fundo, sem encontrar. Eu posso nadar nessas águas profundas e respirar normalmente como se fosse parte delas, mas a consciência de ter sido humana um dia deixa no fundo do pensamento este receio bobo.
A névoa branca embaçou meus olhos e deixou a água turva de repente. Eu não encontrei o que procurava e tampouco podia ver alguma coisa. Tentei nadar para longe da névoa e encontrar o caminho de volta para a superfície, quando senti a presença de um animal grande que espreitava por trás da cortina branca.
Meu novo instinto de habitante do mar me levou para perto da criatura, sem medo do que encontraria.
“Não!”
Minhas lembranças de humana queriam empurrar meu corpo de volta para o outro lado, mas eu parecia mais forte do que elas. Travamos uma guerra momentânea - preservação x coragem - e eu venci. Nadei pela água azul-clara e turva, para detrás da névoa, querendo olhar nos olhos do animal que me observava. Quando ultrapassei os limites da cortina de areia, eu o vi.
Era ele. “ELE”. Este parecia ser seu nome e não havia nada no fundo das minhas lembranças, - nem do meu velho espírito humano, nem da minha nova mente das águas - que me dissesse outro nome que não “ELE”. Alto, forte, cabelos escuros emoldurando o rosto bem desenhado, de linhas fortes. A linha do queixo bem cortada, o nariz respeitável, tudo para justificar a existência de um enorme par de olhos azuis, enfeitados por cílios enormes. O imenso animal que me vigiava era humano.
“Mas como um simples humano pode estar aqui sem equipamento apropriado?” Eu pensei. “Ele não pode ouvir meus pensamentos, pobre criatura...tanta beleza protegendo uma mente tão rudimentar.”

Ele não podia me ouvir, mas tinha algo a dizer, e sua voz era alta embora falasse sem movimentar os lábios. Aquele humano tinha um dom que eu jamais vira.
“Nem NÓS podemos falar tão alto.”
De todas as criaturas que conheci, só as baleias têm este poder. “De onde vem este humano? E o que é isso que ele diz?”
Ele me olhava fixamente, os olhos azuis dentro dos meus, e repetia a palavra que era incompreensível para mim. Parece um nome, ou um lugar...ele dizia que eu não podia esquecer. Eu entendi tudo menos a palavra que não poderia esquecer. Pedi que ele repetisse. Irritado, ele repetiu outra vez e outra vez, e meus ouvidos falhavam. Eu me aproximei dele, coloquei meu ouvido perto de seu peito, que era por onde o som parecia sair. Sinalizei para que ele repetisse. Ele sacudiu a cabeça sorrindo como se eu tivesse acabado de fazer alguma coisa estúpida, me pegou pelos braços, levantando meu corpo até que minha cabeça estivesse na altura da dele e aproximou seus lábios do meu ouvido.
Ele repetiu.
A palavra entrou no corpo sem que eu a ouvisse. Eu pude sentí-la escorrendo pelos ossos do crânio, percorrendo o cérebro e entrando na corrente sanguínea. Era quente e viscosa, quase confortável. Ela entrou no pulmão se espalhando e colando em todas as paredes de forma a endurecer as fibras e, com um estalo altíssimo, descolou novamente, formando uma bola quente e violenta que invadiu as artéria e entrou no coração. Nesta hora a dor superou todos os meus instintos. Nem a velha alma humana, nem o novo corpo atlético de criatura das águas suportaram a dor de ter a palavra, dita por ele, dentro do coração. Um grito ensurdecedor saiu da minha garganta enquanto ele desaparecia na névoa branca brilhante que nos cercava. Meus pulmões não aguentariam mais um segundo se eu não tentasse sair dali.
A névoa se dissipou junto com a imagem dele e eu não entendia porque...por que tanta dor...pra que tanta dor?
Eu não sabia mais respirar e nem era mais uma criatura das águas agora que havia recebido a voz dele dentro de mim. Eu estava sem ar. Procurava lembrar como respirar, sem sucesso algum. Eu sabia que faltava pouco para minha morte. Eu sabia que, se não respirasse, eu desapareceria para sempre. Tentei lembrar do rosto d’ELE. Tentei saber seu nome. Tentei recordar o calor estranho das mãos dele quando segurou meus braços, e o hálito doce que impulsionou a palavra mortal. Eu ia morrer...eu queria levar esta lembrança. Me faltava ar. Eu não respirava. A água clara tornou-se noite escura. Eu flutuava,  inerte.

“É doce...”

Uma golfada de ar entrou pela minha boca e pelas narinas ao mesmo tempo, tentando recuperar meu fôlego. Abri os olhos e o alívio de enxergar quase me levou às lágrimas. Eu não estava morta, e o ar agora parecia sólido. Quase se podia ver as moléculas de oxigênio que vieram me salvar. Eu estava no meu quarto, sentada na cama, suando feito um estivador, tremendo de falta de ar. Respirei fundo mais vezes do que eu saberia e tirei as cobertas que prendiam minhas pernas. Todos os poros eram necessários para reabastecer de oxigênio o meu corpo que quase se foi.

Esta foi a primeira vez que eu sonhei com ele.





(fragmento de "O Outro Lado das Coisas" por Mercedes Gameiro©)

quinta-feira, outubro 14, 2010

_mel

é essa a cor dos olhos?
eu esqueço, eu me lembro, eu tento,
eu sei que eu sei, mas faz tanto tempo...

minha cabeça tende a esquecer as cores
embora meu corpo não esqueça as mãos.
mel nas mãos:
disso eu lembro.
não a consistência ou o perfume...
mas a doçura que persiste.

só pode ser de mel a mão que não te larga
mesmo quando não existe.