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Fui criada como pessoa
branca, hétero, em escola particular, etc, o que me faz parte da “elite” do
país, gostando ou não.
Num determinado momento da
vida precisei rever meus valores e princípios, vigiar meu pensamento e minhas
palavras, para parar de reproduzir ideias que não eram de fato minhas,
pensamentos incutidos pelo meio, machismos e preconceitos que são inseridos na
vida da gente ao nascer, como se fosse um chip que da play assim que a gente -
branco, hétero, com acesso à escola e proteína - nasce.
Precisei resetar tudo e
começar de novo, e aconteceu depois de escalar degraus suficientes para me
tornar realmente elite. Porque enquanto eu fui classe média baixa sem um pila
no bolso, parecia que não era feio fazer pouco do outro - tão parecido comigo -
sem perceber.
Na infância, eu era a
pobretona da classe, morava meio mal, só ganhava roupa nova no Natal, dividia o
quarto, o pacote de absorvente, o guarda-roupas e o banheiro com o resto da família.
Não era convidada pras festas e eventos das colegas de colégio mas nada disso
era importante pra mim ou, sendo bem cruel comigo mesma, parece que não dói se
você acha que, mesmo sendo inferiorizada, você nasceu superior a mais alguém.
Meu primeiro trabalho veio
na oitava série. Fui alfabetizar crianças numa escola que o meu colégio
mantinha numa comunidade (nos anos 70, o nome era FAVELA mesmo). Lá eu tive o
primeiro contato com gente que levava uma vida miserável. Mas a gente ainda
achava que eles eram assim meio que por opção, a gente ainda olhava pra eles
como inferiores, a gente ainda não se dava conta do porquê da miséria. A gente
ainda acusava a mãe das crianças de "fazer um filho com cada pai" e
"ter um monstrinho de cada cor". A gente ainda ensinava regras de
higiene para as crianças, com a superioridade de quem treina chimpanzés, como
se eles não comprassem escova de dentes por opção ou não "quisessem" tomar
banho com sabonete. A gente raspava as cabeças das crianças nas epidemias de
piolho, como num navio negreiro. A gente achava que a família
"atrapalhava" o desenvolvimento civilizatório das crianças. Nós não
passávamos de crianças também, mas éramos sinhazinhas. Fazíamos caridade, sim,
mas com o olhar do colonizador. Quando eu penso nisso hoje, imagino a cara dos
índios olhando para os portugueses, enquanto eles extirpavam a cultura milenar
das tribos, alegando necessidade de higiene, civilização e conhecimento. Falando
assim parece feio ne? Porque é.
Ao mesmo tempo que fazíamos
um trabalho realmente incrível, nossa origem branca colonizadora gritava muito alto.
Mesmo a minha origem - pobretona, penetra na festa do clube com roupa do ano
passado, vinda de uma família sem pedigree que teve origem, de um lado no filho
de um padre, do outro lado no bastardo do barão, passando pela menina que se casou com um homem na Espanha e com outro no Brasil e ninguém ficou sabendo. Mesmo
com essa origem moralmente questionável para os padrões católicos, a minha era
só uma família católica, branca, brasileira, trabalhadora. Muito trabalhadora.
Mas foi no seio da família que eu escutei que os moradores da Cidade de Deus
iam plantar maconha no vaso sanitário, porque não sabiam pra que ele servia. Foi
dentro de casa que ouvi que mulato é preguiçoso porque “a mistura não da
certo”, e vamos dormir porque “amanhã é dia de branco”, como se preto não
trabalhasse de verdade. Foi na escola católica que eu vi meninas cochichando
como princesinhas sobre as alunas bolsistas, filhas da faxineira ou órfãs:
"ela é pobre! nossa coitada!" e mantendo distância profilática.
A Escola se esforçava, mas
era uma escola de elite e você mostra o mundo, mas só quem tem olhos enxerga. Foi
nessa mesma escola que eu tive que decorar a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, aprendi sobre o holocausto, aprendi que liberdade religiosa é um
direito, vi a minha irmã bem branca desfilar na rua vestida de Orixá num 7 de
Setembro, conheci um padre hippie e comunista, aprendi a história de Israel e
de Zumbi dos Palmares, convivi com freiras modernas e revolucionárias que
tentavam nos incutir alguma desobediência civil, em plena ditadura militar. Conheci a
história da arte e da civilização, entendi que a arte é livre e incensurável e
retrata as mazelas de seu tempo, entendi que o mundo é maior do que a minha realidade e
aprendi que o planeta precisa muito, mas muito de justiça social.
Dessa mesma escola saíram
pessoas lindas e humanas que eu trago comigo, e outras que eu precisei bloquear
nas redes sociais, tamanho o fascismo que vomitam todos os dias em posts e
notícias falsas.
Mesmo tendo essa formação
incrível, cresci numa cidade preconceituosa e rude, repetindo grande parte de
seus discursos horríveis, como já demonstrei ali em cima. Digo e repito que
falamos e fazemos coisas horrorosas, por hábito. Por ter ouvido. Por deduzir
que é o certo já que nascemos sabendo. E mesmo tendo acesso à verdade, continuamos,
pois somos frutos de toda uma rede de pensamentos. É esse hábito que faz com
que as pessoas reclamem que o aeroporto parece uma rodoviária porque a classe C
invadiu. É esse hábito que faz você atravessar a rua quando um jovem negro vem
andando na sua calçada. É esse hábito que faz olhar estranho para a mulher de
classe baixa ao seu lado no mestrado. Olhar estranho não é olhar feio; é olhar
com aquela mesma admiração bobinha que você olha pra criancinha que tenta
levantar no berço, assumindo a sua superioridade por andar sobre duas pernas há
anos...
Estes anos metafóricos, -
justamente esses anos de caminhada - foram tirados dos negros, dos índios, são
tirados dos LGBT, das mães solteiras, dos miseráveis e das mulheres. Eu sou
mulher e reconheço que reproduzi muito machismo pela vida a fora. Falei que era
feminina e não feminista (céus!), escrevi criticando mulheres que “dançam até o
chão feito putas e depois não querem ser estupradas na saída da balada”. Briguei para minha filha sentar como
mocinha, não falar palavrão porque fica feio numa mulher, disse pra ela que
mulher bêbada é bagaceiro, disse que ela tem que se valorizar para não parecer
moça fácil (logo eu, incapaz de ser difícil), e outras bobagens sem fim.
Hoje eu sei, mas pra saber
tive que rever. E dói. Dói porque o espelho reflete uma imagem feia e ninguém
gosta de se ver assim. É fácil apontar o dedo, difícil é se reconhecer vaidosa
e injusta.
Hoje eu sei a verdadeira
história do Brasil e de todas as colônias mundo. Sei como funciona. Sei como o
colonizador arranca a alma, a língua e a religião do nativo. Sei do negro no
Brasil. Hoje eu reconheço racismo em frases que eu já disse, em nome de
sobremesa, em ditados populares, em olhares de conhecidos e na maneira de muita
gente tratar os funcionários. Hoje eu sei que rir do sotaque de alguém é dizer
que eu sou melhor do que ele. Hoje eu sei que a “ameaça comunista” é só o
inimigo eleito para justificar desmandos e fascismo, e que toda guerra por
liberdade é unicamente comercial - geralmente petróleo - porque o patrão não se importa com a
sua liberdade. Hoje eu sei que o medo vive debaixo da cama de pessoas que eu
aprendi a amar desde que nasci, porque elas são ignorantes. É medo de perder
privilégios e ter que experimentar a chibata que nunca estalou nas costas de um
dos seus. Como se o oprimido fosse o verdadeiro inimigo e tivesse sede de vingança.
Hoje eu sei que lutei do lado do colonizador e nunca pedi perdão aos atingidos,
e que por muito tempo preferi o que vem de fora à cultura que deveria ter
formado a minha personalidade.
Já vivi mais de metade da minha vida e quero
chegar ao final dela sendo mais justa, mais fraterna, mais humana e mais
coerente. Hoje, as bandeiras que eu levanto pesam menos sobre os meus ombros,
porque são autênticas e me pertencem. Tenho orgulho da pessoa que me
tornei, e quando olho em volta e vejo meus pares, meu sorriso cresce do tamanho
do planeta inteiro, porque era esse o espelho que me faltava.
O que precisa mudar
urgentemente é o olhar de superioridade equivocado das pessoas, porque não há
superioridade em nenhum departamento da vida. É um engano. Há que se acostumar com a
igualdade. Prezar por ela. Há que se olhar para dentro, porque o inimigo mora na
alma e é dentro que se transforma o mundo.
Era isso.