sábado, outubro 16, 2010

_escuro


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Conforme eu passava a mão no fundo de areia branca, uma poeira linda, quase prateada, enchia a água de uma névoa misteriosa. A água era tão azul que eu parecia estar voando, e os brilhos da poeira branca pareciam estrelas num céu líquido.
“O que eu estou procurando?”
Parecia mesmo ser importante e eu nadava aflita, com medo de perder o fôlego enquanto passava a mão no fundo, sem encontrar. Eu posso nadar nessas águas profundas e respirar normalmente como se fosse parte delas, mas a consciência de ter sido humana um dia deixa no fundo do pensamento este receio bobo.
A névoa branca embaçou meus olhos e deixou a água turva de repente. Eu não encontrei o que procurava e tampouco podia ver alguma coisa. Tentei nadar para longe da névoa e encontrar o caminho de volta para a superfície, quando senti a presença de um animal grande que espreitava por trás da cortina branca.
Meu novo instinto de habitante do mar me levou para perto da criatura, sem medo do que encontraria.
“Não!”
Minhas lembranças de humana queriam empurrar meu corpo de volta para o outro lado, mas eu parecia mais forte do que elas. Travamos uma guerra momentânea - preservação x coragem - e eu venci. Nadei pela água azul-clara e turva, para detrás da névoa, querendo olhar nos olhos do animal que me observava. Quando ultrapassei os limites da cortina de areia, eu o vi.
Era ele. “ELE”. Este parecia ser seu nome e não havia nada no fundo das minhas lembranças, - nem do meu velho espírito humano, nem da minha nova mente das águas - que me dissesse outro nome que não “ELE”. Alto, forte, cabelos escuros emoldurando o rosto bem desenhado, de linhas fortes. A linha do queixo bem cortada, o nariz respeitável, tudo para justificar a existência de um enorme par de olhos azuis, enfeitados por cílios enormes. O imenso animal que me vigiava era humano.
“Mas como um simples humano pode estar aqui sem equipamento apropriado?” Eu pensei. “Ele não pode ouvir meus pensamentos, pobre criatura...tanta beleza protegendo uma mente tão rudimentar.”

Ele não podia me ouvir, mas tinha algo a dizer, e sua voz era alta embora falasse sem movimentar os lábios. Aquele humano tinha um dom que eu jamais vira.
“Nem NÓS podemos falar tão alto.”
De todas as criaturas que conheci, só as baleias têm este poder. “De onde vem este humano? E o que é isso que ele diz?”
Ele me olhava fixamente, os olhos azuis dentro dos meus, e repetia a palavra que era incompreensível para mim. Parece um nome, ou um lugar...ele dizia que eu não podia esquecer. Eu entendi tudo menos a palavra que não poderia esquecer. Pedi que ele repetisse. Irritado, ele repetiu outra vez e outra vez, e meus ouvidos falhavam. Eu me aproximei dele, coloquei meu ouvido perto de seu peito, que era por onde o som parecia sair. Sinalizei para que ele repetisse. Ele sacudiu a cabeça sorrindo como se eu tivesse acabado de fazer alguma coisa estúpida, me pegou pelos braços, levantando meu corpo até que minha cabeça estivesse na altura da dele e aproximou seus lábios do meu ouvido.
Ele repetiu.
A palavra entrou no corpo sem que eu a ouvisse. Eu pude sentí-la escorrendo pelos ossos do crânio, percorrendo o cérebro e entrando na corrente sanguínea. Era quente e viscosa, quase confortável. Ela entrou no pulmão se espalhando e colando em todas as paredes de forma a endurecer as fibras e, com um estalo altíssimo, descolou novamente, formando uma bola quente e violenta que invadiu as artéria e entrou no coração. Nesta hora a dor superou todos os meus instintos. Nem a velha alma humana, nem o novo corpo atlético de criatura das águas suportaram a dor de ter a palavra, dita por ele, dentro do coração. Um grito ensurdecedor saiu da minha garganta enquanto ele desaparecia na névoa branca brilhante que nos cercava. Meus pulmões não aguentariam mais um segundo se eu não tentasse sair dali.
A névoa se dissipou junto com a imagem dele e eu não entendia porque...por que tanta dor...pra que tanta dor?
Eu não sabia mais respirar e nem era mais uma criatura das águas agora que havia recebido a voz dele dentro de mim. Eu estava sem ar. Procurava lembrar como respirar, sem sucesso algum. Eu sabia que faltava pouco para minha morte. Eu sabia que, se não respirasse, eu desapareceria para sempre. Tentei lembrar do rosto d’ELE. Tentei saber seu nome. Tentei recordar o calor estranho das mãos dele quando segurou meus braços, e o hálito doce que impulsionou a palavra mortal. Eu ia morrer...eu queria levar esta lembrança. Me faltava ar. Eu não respirava. A água clara tornou-se noite escura. Eu flutuava,  inerte.

“É doce...”

Uma golfada de ar entrou pela minha boca e pelas narinas ao mesmo tempo, tentando recuperar meu fôlego. Abri os olhos e o alívio de enxergar quase me levou às lágrimas. Eu não estava morta, e o ar agora parecia sólido. Quase se podia ver as moléculas de oxigênio que vieram me salvar. Eu estava no meu quarto, sentada na cama, suando feito um estivador, tremendo de falta de ar. Respirei fundo mais vezes do que eu saberia e tirei as cobertas que prendiam minhas pernas. Todos os poros eram necessários para reabastecer de oxigênio o meu corpo que quase se foi.

Esta foi a primeira vez que eu sonhei com ele.





(fragmento de "O Outro Lado das Coisas" por Mercedes Gameiro©)

4 comentários:

Ana Nazareth disse...

Quantas vezes já despertei assim... do escuro... da dor...!

Anônimo disse...

Comentário de sempre: UAU!!!
Intensidade é teu nome Mercedes.
Beijo

Edilene
http://devaneiopulsante.blogspot.com
www.papodequinta.com

Fabio Piva disse...

01:54. As letras à minha frente, companheiras do relógio que teimava em me lembrar que eu não deveria estar acordado. O espaço conhecido -- já havia estado ali inúmeras vezes -- e aquele texto, aquelas letras, aquelas imagens que surgiam na minha mente inquieta. Um comentário -- eu só queria escrever um comentário. Um texto como aquele não poderia ficar sem um pensamento que fosse meu, seria injusto. Mas a idéia se recusava a se apresentar aos meus dedos ávidos pelo teclado.

02:20. Não consigo. Eu não sonhei aquilo, era estranho demais, alegórico demais. Exceto que não era -- as imagens, as letras, tudo me parecia insolitamente familiar. Como aquele Sweet Home Alabama que ecoava do rádio, naquele instante, e levava minha alma para casa. Eu não conheço Alabama, não sei se é o doce lar de alguém. Mas não era o meu, embora eu me sentisse assim -- como aquele sonho, que não era meu e insistia em me trazer aquela familiaridade incômoda. Lembranças de alguma outra vida, talvez? Talvez.

Talvez eu tivesse sido, em alguma outra época, um ser muito diferente do que sou hoje -- quase divino, perfeito, desacostumado à humanidade. Talvez eu tivesse me rendido à curiosidade despertada por alguma presença magnética, e ultrapassado a névoa que me separava dela. Talvez eu tivesse dado ouvidos a palavras que eu pensava saírem do coração, mas que não partiam dali. E talvez por isso eu tivesse sido arrebatado da minha condição divina, da imensidão à qual eu estive por tanto tempo tão confortavelmente imerso, àquela humanidade imperfeita e dolorosa -- mas que ainda era melhor do que a morte.

Talvez, não sei. Mas Alabama não é meu doce lar, e aquele sonho não era o meu. Mas ao menos o comentário estava escrito.

Fabio Piva
http://paciencianegativa.blogspot.com/

Flavia disse...

Nossa! Eu me senti angustiada lendo esse texto, foi como tivesse acontecendo comigo, muuuito bem escrito, adorei!