Já fazia tanto tempo que não se ouvia seu nome...
Desde que tudo mudou e pareceu tão obscuro. Do dia para a noite, tudo o que foi tão lindo pareceu ter desintegrado nas garras do tempo. Um dia, depois outro, depois as lembranças foram ficando escassas… E ela sabia que chegou a esse ponto por culpa dele. Sempre com tanto medo de se machucar. Sempre repetindo a mesma pergunta a cada encontro: “você vai ficar?”
Não...ela não ia ficar, e nem voltaria enquanto ele não usasse todas as letras para dizer, letra por letra, o que ela queria ouvir: “Não vai. Fica comigo.”
Ela tinha sempre essa impressão de que ele não queria. Mas ele também não entendia por que ela nunca ligou, por que ela nunca disse nada? Mas ela disse: ela escreveu, todos os dias, histórias sobre reis em reinos distantes, amados por suas rainhas como ninguém antes. Ela contou sua história mais vezes do que ele poderia ler. E ele não entendeu.
Houve um tempo em que ela não podia evitar que ele fosse seu primeiro pensamento do dia e último da noite. Ele estava em todo lugar, toda refeição, todo filme, todo livro. Mesmo que tão distante, sua ausência era uma presença palpável.
A vida passou. Os anos se foram. E assim, com seus nomes esquecidos em algum lugar já passado, os dois mantinham um ao outro guardados num canto qualquer da memória. Era nome para lembrar às vezes quando o céu estava vermelho, no fim da tarde. Era história para lembrar quando o fluido escorria pela esponja do Zippo deixando a mão oleosa, e ainda se lia algumas palavras que não descascaram. Era coisa pra se lembrar em dia de lua cheia, sozinha na praia, sozinha no escuro, sozinha...Só uma lembrança.
Mas ela voltava. Era sempre ela quem voltava. Voltava sempre muitos anos depois, enquanto ainda existia o tempo. Ele precisava do tempo e ela o presenteava com ele...mas o tempo se foi sem aviso.
Os cabelos prateados lhe caíam no rosto naquela manhã gelada, enquanto esquentava as mãos na caneca de café e abria o programa no computador para escrever. Em dias assim, os dedos doem se não forem aquecidos antes de digitar. O frio congela o peito dos pés. O frio congela as costas das mãos, fazendo sentir cada tendão num esforço incrível para pressionar a tecla certa. Pijama, cachecol, meias de lã, café, cigarro e seu zippo, era tudo o que ela precisava para passar o inverno escrevendo.
O vício de ler seus e-mails interrompeu a décima quinta tentativa de começar um conto. Ela abriu a infinita lista de e-mails de trabalho, de seus 5 grupos de discussão e incontáveis junkmails vindos dos produtos mais absurdos e não teve vontade de ler nada. A não ser por um nome que lhe chamou a atenção. Um nome já visto antes. “Por que meus neurônios me deixam? Onde estão vocês, amiguinhos? Can you hear me?”
“Mariana,
You probably don’t know me, but I know who you are. I need to talk to you about my dad. He’s an old friend of yours, and I think it’s time for you to know what is happening to him. Please, reply this e-mail with you phone number, and I’ll call you today.
I really need to talk to you. Please, don’t ignore me.
T.Ross"
Ela leu e releu, e leu e releu aquele e-mail, tentando não se deixar enganar por alguma lembrança perdida. Quem mais poderia ser? Não era possível que isso fosse uma brincadeira, não era possível que alguém brincasse com isso. A esta altura, aquele menino devia ter o que? Vinte e três? Vinte e quatro anos? Durante tanto tempo ele protegeu este filho, como se ela fosse capaz de fazer algum mal a ele. Neuroses. Pura neurose. Ao mesmo tempo que ele disse várias vezes: “eu sei o quanto você ama os seus filhos”, ele agia como se ela não fosse capaz de amar o dele. Nunca permitiu que se conhecessem, que se encontrassem. Não ferir este filho era a vida dele. Por que ele permitiria que se conhecessem? Apaixonante como ela era, o menino certamente sentiria segurança em sua presença, mas há poucas horas ela disse que não ficaria. Quando ela partisse, seriam dois a sentir a mesma dor contundente. Mal sabe ele o que causou a ela por tanto se proteger dessa dor!
Ela era aberta, entregue, alegre, transparente! Jogava sobre ele um amor que o cegava de tão grande, de tão certeiro. Ele recebia tudo e bebia esse amor com violência, mas depois se afastava guardando para si cada restinho de amor que ela tivesse esquecido num gesto, numa peça de roupa, num presente. A ela não restava nada. Ela partia, sempre deixando seu coração para trás. Levando consigo o maior de todos os sonhos: o de um dia ficar - o dia em que ele finalmente soubesse dizer: “FICA”.
Sem pensar duas vezes, ela respondeu ao e-mail e não pode mais escrever uma linha. Enquanto o telefone não tocasse, ela não seria ninguém.
Mas só no dia seguinte o celular finalmente vibrou.
- Alô?
- Mariana?
- Sim, quem é?
- Tarik Ross.
- Quem?
- Você não me conhece…eu sou filho do…
- Eu sei quem é você Tarik. Só queria ter certeza.
- Mariana, eu não sei nem como começar.
- Como está seu pai?
- Pois é. Meu pai não está bem.
- O que aconteceu?
- Ele está doente, Mariana. Ele está morrendo.
- Como? O que ele tem, Tarik?
- Ele não tem na verdade. Ele se deixou cair numa depressão enorme. Não tem sintomas físicos, e quando tem, são todos somatização. Mas está me dando um trabalho louco, porque não quer comer, não sai da cama, não sai de casa. Ele está tão desnutrido que às vezes precisa ir para o hospital para se alimentar. Está muito difícil.
- Meu Deus Tarik...mas...
- Desculpa estar ligando para você, mas eu andei mexendo nas coisas dele. Li coisas que vocês escreveram um pro outro, e resolvi que ia te achar.
- Sei...Ele ainda tem as coisas que eu escrevi?
- Tudo. Faz muito tempo que eu escuto o seu nome, Mariana. Desde que eu cresci um pouco, ele passou a falar de você. No ano passado foi quando ele falou mais, contou mais histórias, me mostrou mais fotos.
- É mesmo?
- É. Eu já tinha visto uma foto sua que estava no porta-retratos do quarto dele, há anos. Ele dizia que aquela era a mulher mais linda que ele conheceu.
- Ele tem uma foto minha num porta-retrato?
- Você não imagina o que ele tem…E eu…eu não sei como dizer…
- Fala Tarik.
- Mariana, eu tenho medo que ele morra sem ver você de novo.
Os olhos de Mariana já estavam cheios d’água desde que ouviu Tarik falar seu nome. Mas agora, o peso de promessas antigas feitas com os pés descalços na areia caiu sobre seus olhos, trazendo todas as lágrimas do mundo.
- E você, está bem Mariana?
- Ah Tarik...eu estou como sempre estive. Sentada aqui olhando para 26 letras no meu teclado, com os olhos cheios, sem saber se morro de alegria por saber que estou presente na vida do seu pai, ou de tristeza por tê-lo perdido por tanto tempo. Hoje como há 20 anos... nada mudou.
- Mas você ...Tem alguém?
- Não...eu estou viúva há 10 anos. O que você quer, Tarik? Seja claro.
- Eu quero que você venha ficar perto dele, Mariana. Eu acho que você pode salvar o meu pai.
Era um turbilhão de lembranças, medos, informações, alegrias, lágrimas, tudo ao mesmo tempo. Que vida é essa que faz com que pessoas esperem 20 anos para se encontrar, e só façam isso pouco antes da morte?
Mariana chorou aquele dia, mais do que nos últimos cinco anos, lembrado das noites em que deitava na cama e pedia para que sonhasse com ele. Em seus sonhos, os abraços eram reais. Ele, o rei de todos os abraços, com seu corpo enorme que tomava cada centímetro do seu e a levantava do chão. Não havia outro abraço como o dele, nem em dez mil histórias de amor.
Desde que tudo mudou e pareceu tão obscuro. Do dia para a noite, tudo o que foi tão lindo pareceu ter desintegrado nas garras do tempo. Um dia, depois outro, depois as lembranças foram ficando escassas… E ela sabia que chegou a esse ponto por culpa dele. Sempre com tanto medo de se machucar. Sempre repetindo a mesma pergunta a cada encontro: “você vai ficar?”
Não...ela não ia ficar, e nem voltaria enquanto ele não usasse todas as letras para dizer, letra por letra, o que ela queria ouvir: “Não vai. Fica comigo.”
Ela tinha sempre essa impressão de que ele não queria. Mas ele também não entendia por que ela nunca ligou, por que ela nunca disse nada? Mas ela disse: ela escreveu, todos os dias, histórias sobre reis em reinos distantes, amados por suas rainhas como ninguém antes. Ela contou sua história mais vezes do que ele poderia ler. E ele não entendeu.
Houve um tempo em que ela não podia evitar que ele fosse seu primeiro pensamento do dia e último da noite. Ele estava em todo lugar, toda refeição, todo filme, todo livro. Mesmo que tão distante, sua ausência era uma presença palpável.
A vida passou. Os anos se foram. E assim, com seus nomes esquecidos em algum lugar já passado, os dois mantinham um ao outro guardados num canto qualquer da memória. Era nome para lembrar às vezes quando o céu estava vermelho, no fim da tarde. Era história para lembrar quando o fluido escorria pela esponja do Zippo deixando a mão oleosa, e ainda se lia algumas palavras que não descascaram. Era coisa pra se lembrar em dia de lua cheia, sozinha na praia, sozinha no escuro, sozinha...Só uma lembrança.
Mas ela voltava. Era sempre ela quem voltava. Voltava sempre muitos anos depois, enquanto ainda existia o tempo. Ele precisava do tempo e ela o presenteava com ele...mas o tempo se foi sem aviso.
Os cabelos prateados lhe caíam no rosto naquela manhã gelada, enquanto esquentava as mãos na caneca de café e abria o programa no computador para escrever. Em dias assim, os dedos doem se não forem aquecidos antes de digitar. O frio congela o peito dos pés. O frio congela as costas das mãos, fazendo sentir cada tendão num esforço incrível para pressionar a tecla certa. Pijama, cachecol, meias de lã, café, cigarro e seu zippo, era tudo o que ela precisava para passar o inverno escrevendo.
O vício de ler seus e-mails interrompeu a décima quinta tentativa de começar um conto. Ela abriu a infinita lista de e-mails de trabalho, de seus 5 grupos de discussão e incontáveis junkmails vindos dos produtos mais absurdos e não teve vontade de ler nada. A não ser por um nome que lhe chamou a atenção. Um nome já visto antes. “Por que meus neurônios me deixam? Onde estão vocês, amiguinhos? Can you hear me?”
“Mariana,
You probably don’t know me, but I know who you are. I need to talk to you about my dad. He’s an old friend of yours, and I think it’s time for you to know what is happening to him. Please, reply this e-mail with you phone number, and I’ll call you today.
I really need to talk to you. Please, don’t ignore me.
T.Ross"
Ela leu e releu, e leu e releu aquele e-mail, tentando não se deixar enganar por alguma lembrança perdida. Quem mais poderia ser? Não era possível que isso fosse uma brincadeira, não era possível que alguém brincasse com isso. A esta altura, aquele menino devia ter o que? Vinte e três? Vinte e quatro anos? Durante tanto tempo ele protegeu este filho, como se ela fosse capaz de fazer algum mal a ele. Neuroses. Pura neurose. Ao mesmo tempo que ele disse várias vezes: “eu sei o quanto você ama os seus filhos”, ele agia como se ela não fosse capaz de amar o dele. Nunca permitiu que se conhecessem, que se encontrassem. Não ferir este filho era a vida dele. Por que ele permitiria que se conhecessem? Apaixonante como ela era, o menino certamente sentiria segurança em sua presença, mas há poucas horas ela disse que não ficaria. Quando ela partisse, seriam dois a sentir a mesma dor contundente. Mal sabe ele o que causou a ela por tanto se proteger dessa dor!
Ela era aberta, entregue, alegre, transparente! Jogava sobre ele um amor que o cegava de tão grande, de tão certeiro. Ele recebia tudo e bebia esse amor com violência, mas depois se afastava guardando para si cada restinho de amor que ela tivesse esquecido num gesto, numa peça de roupa, num presente. A ela não restava nada. Ela partia, sempre deixando seu coração para trás. Levando consigo o maior de todos os sonhos: o de um dia ficar - o dia em que ele finalmente soubesse dizer: “FICA”.
Sem pensar duas vezes, ela respondeu ao e-mail e não pode mais escrever uma linha. Enquanto o telefone não tocasse, ela não seria ninguém.
Mas só no dia seguinte o celular finalmente vibrou.
- Alô?
- Mariana?
- Sim, quem é?
- Tarik Ross.
- Quem?
- Você não me conhece…eu sou filho do…
- Eu sei quem é você Tarik. Só queria ter certeza.
- Mariana, eu não sei nem como começar.
- Como está seu pai?
- Pois é. Meu pai não está bem.
- O que aconteceu?
- Ele está doente, Mariana. Ele está morrendo.
- Como? O que ele tem, Tarik?
- Ele não tem na verdade. Ele se deixou cair numa depressão enorme. Não tem sintomas físicos, e quando tem, são todos somatização. Mas está me dando um trabalho louco, porque não quer comer, não sai da cama, não sai de casa. Ele está tão desnutrido que às vezes precisa ir para o hospital para se alimentar. Está muito difícil.
- Meu Deus Tarik...mas...
- Desculpa estar ligando para você, mas eu andei mexendo nas coisas dele. Li coisas que vocês escreveram um pro outro, e resolvi que ia te achar.
- Sei...Ele ainda tem as coisas que eu escrevi?
- Tudo. Faz muito tempo que eu escuto o seu nome, Mariana. Desde que eu cresci um pouco, ele passou a falar de você. No ano passado foi quando ele falou mais, contou mais histórias, me mostrou mais fotos.
- É mesmo?
- É. Eu já tinha visto uma foto sua que estava no porta-retratos do quarto dele, há anos. Ele dizia que aquela era a mulher mais linda que ele conheceu.
- Ele tem uma foto minha num porta-retrato?
- Você não imagina o que ele tem…E eu…eu não sei como dizer…
- Fala Tarik.
- Mariana, eu tenho medo que ele morra sem ver você de novo.
Os olhos de Mariana já estavam cheios d’água desde que ouviu Tarik falar seu nome. Mas agora, o peso de promessas antigas feitas com os pés descalços na areia caiu sobre seus olhos, trazendo todas as lágrimas do mundo.
- E você, está bem Mariana?
- Ah Tarik...eu estou como sempre estive. Sentada aqui olhando para 26 letras no meu teclado, com os olhos cheios, sem saber se morro de alegria por saber que estou presente na vida do seu pai, ou de tristeza por tê-lo perdido por tanto tempo. Hoje como há 20 anos... nada mudou.
- Mas você ...Tem alguém?
- Não...eu estou viúva há 10 anos. O que você quer, Tarik? Seja claro.
- Eu quero que você venha ficar perto dele, Mariana. Eu acho que você pode salvar o meu pai.
Era um turbilhão de lembranças, medos, informações, alegrias, lágrimas, tudo ao mesmo tempo. Que vida é essa que faz com que pessoas esperem 20 anos para se encontrar, e só façam isso pouco antes da morte?
Mariana chorou aquele dia, mais do que nos últimos cinco anos, lembrado das noites em que deitava na cama e pedia para que sonhasse com ele. Em seus sonhos, os abraços eram reais. Ele, o rei de todos os abraços, com seu corpo enorme que tomava cada centímetro do seu e a levantava do chão. Não havia outro abraço como o dele, nem em dez mil histórias de amor.
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O mar estava calmo como todos os dias no canal. As velas brancas e os motores dos barcos desenhavam a água com seu rastro branco, avisando que o dia começou. Pouco a pouco as janelas da casa foram se abrindo para deixar o sol de verão entrar trazendo a marezia e a folia das gaivotas. E era assim que ele entrava todas as manhãs pela janela da cozinha da casa dos Ross.
Apesar de se tratar da casa de dois homens sozinhos, o lugar tinha detalhes femininos e um ar bucólico, com prateleiras que circulavam todo o espaço, na altura das portas, para exibir antigas e delicadas porcelanas do tempo da grande depressão.
Pela janela aberta, vê-se o céu eternamente azul da cidade, o canal e o mar, as gaivotas e a torre de salva-vidas que guardava os segredos desta história.
- Pai, desce pra tomar café?
Tarik termina de colocar na mesa os talheres e a caixa de cereais.
– Pai! Desce!
Sem resposta, ele sobe a escada impaciente e abre a porta do quarto do pai.
- Pai, o café está pronto.
- Pode comer.
Deitado na cama, abatido de magro, está Daren. Antes um homem enorme e saudável, de pele dourada de sol e olhos brilhantes, que hoje são foscos de tristeza.
- Eu não vou comer sem você. Aliás, grande idéia! Se você não comer eu não como mais. Aí você vai ter que levantar dessa cama para cuidar de mim.
- Ah, garoto…não faz isso comigo. Me deixa aqui e vai ser feliz.
- Pai… não existe eu ser feliz com você jogado aí.
O telefone tocou na mesa de cabeceira interrompendo a conversa -- o que parecia satisfazer a Daren, que ganhou mais alguns minutos de sossego. Tarik atende:
- Alô?… Oi. Onde você está?…que bom! Não, de jeito nenhum, eu faço questão
Tarik virou-se de costas e falou mais baixo para evitar ser ouvido pelo pai.
- Não, eu convidei. Não tem graça. Vem pra casa.
Ele desliga o telefone e reclama novamente do pai:
- Vai pai, levanta!
- Quem era? – Perguntou Daren sentando-se na cama.
- Ninguém.
- Quem “vem pra casa”?
- A vida! A vida vem pra casa! E se eu fosse você se arrumava e vinha tomar café, porque a Vida vai te encontrar com esse pijama horrível!
Daren levantou-se reclamando e foi em direção ao banheiro.
- A vida! …ha! A vida já acabou comigo. Só falta ela acabar com o meu café.
Tarik jogou uma toalha de banho no pai.
- Aproveita e toma um banho. Você está um lixo.
- Aaaai!
Daren bateu a porta do banheiro e continuou reclamando lá de dentro.
- Se eu soubesse que você ia crescer pra me dar ordens, tinha deixado você virar um mauricinho lá com a sua mãe!
- Sem chance, velhinho! Eu estaria aqui de qualquer jeito.
Daren abre novamente a porta:
- É a sua mãe que está vindo para cá?
- Não pai, relaxa. Ninguém está vindo para cá.
- Ufa! Aí era pra acabar comigo de uma vez.
Tarik desceu a escada rindo, feliz pelo pai ter se levantado e estar mais falante hoje do que de costume. Reclamações são só o que ele tem a dizer, mas ainda assim, é melhor do que quando ele parece não estar neste mundo.
Algum tempo depois, a campainha tocou. Tarik foi abrir a porta e encontrou Mariana, com seus cabelos loiros-prateados despenteados pelo vento, olhando para o mar, de costas para a porta. Ela tinha uma grande mala vermelha, uma sacola de mão e o olhar na praia.
- Mariana?
Ela continuou parada onde estava, virou apenas a cabeça para trás, suspirando.
- Quando você me deu o endereço, eu não imaginei que esta fosse a casa.
- Você já tinha vindo aqui?
- Eu passei por aqui uma vez, há muitos anos. Ainda tem uma torre ali na praia?
- A torre do meu pai? Claro. No mesmo lugar de sempre.
Mariana sorriu para Tarik.
- Bem vinda à minha casa.
- Obrigada Tarik. Você ficou igual ao seu pai...
- Não dá pra negar. E você...o tempo só ajuda...
- Quem dera! Vamos lá? Encarar a fera?
Tarik pegou as malas e abriu espaço para que Mariana entrasse primeiro.
- Ele não sabe que você está aqui.
- O que? Mas ele tinha que saber!
- Entra Mariana. Fica tranquila. Vai dar tudo certo.
Os dois entraram na casa em silêncio. Mariana podia ouvir apenas o bater escandaloso de seu próprio coração que parecia querer sair pela boca de nervoso. Ao mesmo tempo que esta angústia quase explodia em seu peito, seu rosto não conseguia conter um sorriso de euforia.
Tarik pegou Mariana pelos ombros, olhou diretamente em seu olhos sorrindo:
- Obrigada por ter vindo. Você não imagina o que isso significa pra mim.
Mariana puxou Tarik para perto de si num longo abraço.
- E pra mim... Sabe que eu sempre quis te abraçar assim?
Ele conduziu Mariana para dentro da cozinha e subiu até a metade da escada:
- Fica aqui… Pai?
- Quem era na porta?
- O correio. Chegou um pacote pra você.
- Ah! Pensei que fosse a "vida"! Deixa aí. Não deve ser importante.
- Acho que é.
Daren apareceu no alto da escada.
- Acha porque?
- Porque é do Brasil.
- Do Brasil? –descendo a escada o mais rápido que podia, mesmo isso sendo muito devagar - Cadê?
- Não corre assim, Pai.
- Ah…eu to velho mas não to morto. Não vou cair. Cadê o pacote?
Ele andou pela sala de estar procurando o pacote sem encontrar. Mariana chegou na porta da cozinha, encostando-se calmamente:
- Aqui.
Tarik ficou imóvel no meio da escada, esperando para saber a reação de seu pai. Daren, que estava agitado, parou...virou-se devagar, ainda descrente da voz que ouvira. Na porta, Mariana sorria um sorriso aberto, com seus olhos negros brilhando como não acontecia há muito tempo. Durante alguns segundos -- quase uma eternidade -- isso foi tudo o que aconteceu: Daren paralizado pelos olhos brilhantes de Mariana. Mariana sorrindo na porta vendo de novo o único rosto que seus neurônios fujões não permitiram que ela apagasse, Tarik sentando-se devagar no degrau da escada, e o silêncio. Só as gaivotas ousavam se mexer numa hora dessas...
Mas a voz de Mariana rompeu o silêncio:
- Na minha história, esta é a hora que você me abraça.
Daren não podia se mexer, mas algo em seus olhos estava mudado. Um brilho antigo parecia ressuscitar de repente, trazendo um sorriso pequeno, mas feliz.
- Na minha história, essa é a hora que você anda até aqui.
Sem uma palavra, Mariana desencostou da porta da cozinha e andou até a sala de estar para perto de Daren. Quando estava próxima o bastante, ela moveu levemente o rosto, perguntando, sem mover os lábios, o que mais deveria fazer.
Mais alguns segundos de olhos brilhando e silêncio eloquente... Os olhos falavam mais do que poderia ter sido dito nos anos que passaram. Daren e Mariana estavam parados ali, passando a limpo os motivos que os separaram por tanto tempo, assistindo a um filme triste, um nos olhos do outro, enquanto Tarik, emocionado, assistia.
Daren levou a mão ao rosto de Mariana. Ela fechou os olhos e debruçou a cabeça na a mão grande sobre a qual escreveu tantas vezes. Ele passou os dedos em torno de seus olhos, de seus lábios, tirou dos olhos os fios de cabelo prateados e sorriu. Mariana tinha lágrimas nos olhos, outra vez, como das outras vezes, como todas as vezes. Daren tinha o poder de emocioná-la apenas por existir. O olhar de Daren foi sempre seu ponto fraco. A presença dele, sempre sua rendição.
Daren encostou a testa na testa dela:
- Você demorou tanto…
Os dois se abraçaram, chorando.
Apesar de se tratar da casa de dois homens sozinhos, o lugar tinha detalhes femininos e um ar bucólico, com prateleiras que circulavam todo o espaço, na altura das portas, para exibir antigas e delicadas porcelanas do tempo da grande depressão.
Pela janela aberta, vê-se o céu eternamente azul da cidade, o canal e o mar, as gaivotas e a torre de salva-vidas que guardava os segredos desta história.
- Pai, desce pra tomar café?
Tarik termina de colocar na mesa os talheres e a caixa de cereais.
– Pai! Desce!
Sem resposta, ele sobe a escada impaciente e abre a porta do quarto do pai.
- Pai, o café está pronto.
- Pode comer.
Deitado na cama, abatido de magro, está Daren. Antes um homem enorme e saudável, de pele dourada de sol e olhos brilhantes, que hoje são foscos de tristeza.
- Eu não vou comer sem você. Aliás, grande idéia! Se você não comer eu não como mais. Aí você vai ter que levantar dessa cama para cuidar de mim.
- Ah, garoto…não faz isso comigo. Me deixa aqui e vai ser feliz.
- Pai… não existe eu ser feliz com você jogado aí.
O telefone tocou na mesa de cabeceira interrompendo a conversa -- o que parecia satisfazer a Daren, que ganhou mais alguns minutos de sossego. Tarik atende:
- Alô?… Oi. Onde você está?…que bom! Não, de jeito nenhum, eu faço questão
Tarik virou-se de costas e falou mais baixo para evitar ser ouvido pelo pai.
- Não, eu convidei. Não tem graça. Vem pra casa.
Ele desliga o telefone e reclama novamente do pai:
- Vai pai, levanta!
- Quem era? – Perguntou Daren sentando-se na cama.
- Ninguém.
- Quem “vem pra casa”?
- A vida! A vida vem pra casa! E se eu fosse você se arrumava e vinha tomar café, porque a Vida vai te encontrar com esse pijama horrível!
Daren levantou-se reclamando e foi em direção ao banheiro.
- A vida! …ha! A vida já acabou comigo. Só falta ela acabar com o meu café.
Tarik jogou uma toalha de banho no pai.
- Aproveita e toma um banho. Você está um lixo.
- Aaaai!
Daren bateu a porta do banheiro e continuou reclamando lá de dentro.
- Se eu soubesse que você ia crescer pra me dar ordens, tinha deixado você virar um mauricinho lá com a sua mãe!
- Sem chance, velhinho! Eu estaria aqui de qualquer jeito.
Daren abre novamente a porta:
- É a sua mãe que está vindo para cá?
- Não pai, relaxa. Ninguém está vindo para cá.
- Ufa! Aí era pra acabar comigo de uma vez.
Tarik desceu a escada rindo, feliz pelo pai ter se levantado e estar mais falante hoje do que de costume. Reclamações são só o que ele tem a dizer, mas ainda assim, é melhor do que quando ele parece não estar neste mundo.
Algum tempo depois, a campainha tocou. Tarik foi abrir a porta e encontrou Mariana, com seus cabelos loiros-prateados despenteados pelo vento, olhando para o mar, de costas para a porta. Ela tinha uma grande mala vermelha, uma sacola de mão e o olhar na praia.
- Mariana?
Ela continuou parada onde estava, virou apenas a cabeça para trás, suspirando.
- Quando você me deu o endereço, eu não imaginei que esta fosse a casa.
- Você já tinha vindo aqui?
- Eu passei por aqui uma vez, há muitos anos. Ainda tem uma torre ali na praia?
- A torre do meu pai? Claro. No mesmo lugar de sempre.
Mariana sorriu para Tarik.
- Bem vinda à minha casa.
- Obrigada Tarik. Você ficou igual ao seu pai...
- Não dá pra negar. E você...o tempo só ajuda...
- Quem dera! Vamos lá? Encarar a fera?
Tarik pegou as malas e abriu espaço para que Mariana entrasse primeiro.
- Ele não sabe que você está aqui.
- O que? Mas ele tinha que saber!
- Entra Mariana. Fica tranquila. Vai dar tudo certo.
Os dois entraram na casa em silêncio. Mariana podia ouvir apenas o bater escandaloso de seu próprio coração que parecia querer sair pela boca de nervoso. Ao mesmo tempo que esta angústia quase explodia em seu peito, seu rosto não conseguia conter um sorriso de euforia.
Tarik pegou Mariana pelos ombros, olhou diretamente em seu olhos sorrindo:
- Obrigada por ter vindo. Você não imagina o que isso significa pra mim.
Mariana puxou Tarik para perto de si num longo abraço.
- E pra mim... Sabe que eu sempre quis te abraçar assim?
Ele conduziu Mariana para dentro da cozinha e subiu até a metade da escada:
- Fica aqui… Pai?
- Quem era na porta?
- O correio. Chegou um pacote pra você.
- Ah! Pensei que fosse a "vida"! Deixa aí. Não deve ser importante.
- Acho que é.
Daren apareceu no alto da escada.
- Acha porque?
- Porque é do Brasil.
- Do Brasil? –descendo a escada o mais rápido que podia, mesmo isso sendo muito devagar - Cadê?
- Não corre assim, Pai.
- Ah…eu to velho mas não to morto. Não vou cair. Cadê o pacote?
Ele andou pela sala de estar procurando o pacote sem encontrar. Mariana chegou na porta da cozinha, encostando-se calmamente:
- Aqui.
Tarik ficou imóvel no meio da escada, esperando para saber a reação de seu pai. Daren, que estava agitado, parou...virou-se devagar, ainda descrente da voz que ouvira. Na porta, Mariana sorria um sorriso aberto, com seus olhos negros brilhando como não acontecia há muito tempo. Durante alguns segundos -- quase uma eternidade -- isso foi tudo o que aconteceu: Daren paralizado pelos olhos brilhantes de Mariana. Mariana sorrindo na porta vendo de novo o único rosto que seus neurônios fujões não permitiram que ela apagasse, Tarik sentando-se devagar no degrau da escada, e o silêncio. Só as gaivotas ousavam se mexer numa hora dessas...
Mas a voz de Mariana rompeu o silêncio:
- Na minha história, esta é a hora que você me abraça.
Daren não podia se mexer, mas algo em seus olhos estava mudado. Um brilho antigo parecia ressuscitar de repente, trazendo um sorriso pequeno, mas feliz.
- Na minha história, essa é a hora que você anda até aqui.
Sem uma palavra, Mariana desencostou da porta da cozinha e andou até a sala de estar para perto de Daren. Quando estava próxima o bastante, ela moveu levemente o rosto, perguntando, sem mover os lábios, o que mais deveria fazer.
Mais alguns segundos de olhos brilhando e silêncio eloquente... Os olhos falavam mais do que poderia ter sido dito nos anos que passaram. Daren e Mariana estavam parados ali, passando a limpo os motivos que os separaram por tanto tempo, assistindo a um filme triste, um nos olhos do outro, enquanto Tarik, emocionado, assistia.
Daren levou a mão ao rosto de Mariana. Ela fechou os olhos e debruçou a cabeça na a mão grande sobre a qual escreveu tantas vezes. Ele passou os dedos em torno de seus olhos, de seus lábios, tirou dos olhos os fios de cabelo prateados e sorriu. Mariana tinha lágrimas nos olhos, outra vez, como das outras vezes, como todas as vezes. Daren tinha o poder de emocioná-la apenas por existir. O olhar de Daren foi sempre seu ponto fraco. A presença dele, sempre sua rendição.
Daren encostou a testa na testa dela:
- Você demorou tanto…
Os dois se abraçaram, chorando.
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Precisa continuar?