.
Lá no meio ou no fim dos anos 70, minha turma do Colégio
costumava fazer um jantar por mês, geralmente temático, porque...sei lá porque.
Era cada vez na casa de uma de nós.
Tínhamos 16 anos em média, éramos não mais
do que 19 meninas de uma turma engraçada. Não éramos desunidas, mas havia uma
certa divisão na sala.
Tinha as não-virgens (não...a gente não as
chamava assim) que eram as meninas que namoravam há anos com caras mais velhos
do que nós, algumas até usavam aliança. Eram todas super mais bonitas, hiper
cool e, de longe, muito mais interessantes do que as outras, simplesmente porque
tinham mais assunto e mais histórias pra contar.
Tinha as CDF, que como no resto do
universo, eram menos bonitas, mais quietas, mais descabeladas. Mais tarde
essa diferença deixou de existir, porque ninguém consegue fazer a linha
meu-cabelo-é-feio-mas-sou-inteligente a vida inteira. Algumas delas se tornaram mulhers bem bonitas.
Tinha as superamigas: meninas que estudaram
juntas desde o jardim, vieram da turma da tarde e não se separavam para nada.
Eu passei três anos inteiros me sentindo uma outsider perto delas.
E tinha “nós”. Nós éramos as que não
viajavam nas férias, não eram convidadas para as festas de 15 anos, não
frequentavam a casa das outras a não ser que tivessem trabalho em grupo pra
fazer, ficavam sabendo das festas do final de semana só na segunda, pelos
comentários. Nós não éramos importantes. Apenas estávamos lá.
A diferença básica entre eu e a maioria das
meninas da minha sala, numa escola de elite, é que elas faziam parte desta
elite, enquanto eu era bem quebrada. Nessa época eu morava num
apartamento/sobrado perto da Escola e meus pais estavam tentando se reerguer de
um daqueles golpes do destino que levam embora todos os centavos que você
pensava que tivesse. Até hoje eu não sei direito se os 4 filhos da minha mãe
eram bolsistas, ou se meu pai vendia a alma para a diretora da Escola uma vez por ano.
Provavelmente a segunda hipótese.
Então um desses jantares foi na minha casa.
Eu lembro que o tema era “jantar brega”. Lembro de procurar a toalha de mesa mais
estampada, flores de plástico para um arranjo, e a roupa mais esdrúxula. Lembro de pensar num cardápio igualmente
brega. Me preparei para tudo. Quase tudo. Tudo menos o olhar de reprovação de
duas das minhas “amigas”.
Lembro de querer ser surda pra não escutar os
comentários maldosos que elas não se preocuparam em esconder. Lembro de querer não ver as duas andando pela minha
casa e comentando as cortinas, os móveis, a louça, até os talheres de servir. Lembro
de sentarem na minha cama (eu dormia com minhas duas irmãs) e uma
delas passar a mão na colcha cor-de-rosa-medonha (ou era azul-medonha?) e olhar para a outra com um
sorrisinho malvadão. Talvez tenha sido a coisa mais rude que eu vivi.
Mas eu
sempre fui desligada. Sempre fui tranquila. Nunca achei grandes diferenças
entre o meu apartamento humilde e algumas das mansões em que minhas amigas
bonitas moravam. Era meio que uma regra: as bonitas eram legais e muito ricas. As outras apenas moravam bem. Mas eu nunca quis a casa de nenhuma delas, ou estilo de vida, nem o guarda-roupa. -- Quis o
intercâmbio...mas também quis assim tipo “nossa que legal seria”, nunca passou disso. Não ter, jamais foi um
problema pra mim. Não ser sim...isso seria um golpe terrível bem no meio do coração
dos meus pais, e me faria tremendamente infeliz. Ser, eu sempre fui.
E acho que foi por isso que me chocou a
atitude das duas. Por eu não entender que diferença tão enorme elas viram. O
que era tão absurdo na casa de uma família trabalhadora e digna, que as fez rir
tanto? O que era tão fora do comum na casa de uma família unida, que causou
nojinho a elas?
Eu não fiquei triste. Eu não me senti
humilhada. Mas esta foi a primeira vez que eu achei que o mundo talvez não fosse
um lugar muito amigável. Foi a primeira vez que eu vi que alguns humanos
nasceram cruéis e pequenos. E tive pena. Delas. Torci para que os pais delas nunca
ficassem sem dinheiro, porque talvez elas não soubessem mais viver. Talvez elas sofressem demais, e talvez não conseguissem ver o mundo
com os meus olhos, como um alívio. Seria cruel.
Aí os anos passaram, a vida passou, a
tecnologia evoluiu, e chegou o Facebook. Ah Facebook! Não faz assim comigo!
Adivinha quem veio me adicionar como amiga?
Sim, senhoras e senhores...pois é.
E foi aí que eu descobri uma coisa horrível
sobre mim mesma: eu não sou legal. Não consigo ser legal. Não tem como eu
clicar “aceitar”. Não tem como eu achar normal que 30 e sei lá quantos anos
depois eu não tenha esquecido essa história, mas também não dá pra acreditar
que elas tenham. Aí eu simplesmente não quero que elas participem da
minha vida. Passaram todos esses anos vivendo sem mim e eu sem elas, certo? Pra
que mudar isso agora? Eu seria bacana se desse a elas a chance de
mostrar que se tornaram mulheres melhores. Eu seria generosa se as deixasse
entrar na minha vida pra conferir as cortinas da minha casa nova. Talvez.
Mas eu não sou legal, bacaninha,
generosa...é tudo mentira. Eu guardo rancor. Esse, pelo menos, parece estar bem
guardado.
Desculpa mundo. Não dá pra ser uma linda o tempo todo. It’s beyond my control.
**não precisa me dizer pra não dar bola pra isso, não precisa me dizer que eu sou melhor que elas, não precisa...não precisa. Obrigada