terça-feira, setembro 08, 2009

Dorothy



Era uma noite qualquer de inverno. Virada de século.
Um encontro casual no portão de ferro mudou o rumo das coisas para aquela mulher que não via na vida novidade possível.
Prontificou-se a abrir o portão. Parecia uma noite qualquer, mas a luz entre as folhas das árvores revelou um olhar ainda não percebido. A força dos olhos percorreu o corpo e encontrou o estômago vazio despreparado, como uma faca afiada, suja de mel e alguma bebida embriagante.
Ela parou na porta do carro. O sapo na boca da cobra. Não sabia se mexer. Não sabia desviar o olhar.
Como se o controle remoto comandasse seus gestos, aproximou-se da janela sorrindo, apertou os olhos para ver direito, não entendeu o que viria a seguir, mas sabia que era a coisa errada-certa a fazer: provou da melhor boca que jamais provaria por dez vidas. Lembrou das bocas que beijou nas últimas dez e da voz que ouvira em sonho: "Sente este gosto".

Em segundos, gosto de pecado na boca, ela deixou de existir para ser Dorothy. Sabe Deus de onde vinha Dorothy: se de outra vida, de outro universo, da vontade de não ser ela para poder transgredir sem culpa. Entregar-se àquele beijo e não deixá-lo acabar.
Mal sabia Dorothy. E não queria saber. Queria todos os dias mais e mais e mais beijos apaixonados, moles, molhados, lambidos, macios, hipnotizantes, de faca afiada com mel e alguma droga alucinógena. Não tinha trabalho. Não tinha família. Não tinha passado. Dorothy e sua boca eram a única vida existente num universo de transgressão.

Sexo. Claro que os beijos não vinham sozinhos. A boca de Dorothy não podia parar. Queria explorar, queria sentir o gosto do desejo e de tudo que vinha dos olhos de faca.... Queria provar do mel e da droga. Queria engolir a vida aos tragos. Queria morrer com o sabor do beijo.

Não havia lugar onde seus desejos não coubessem. O mundo inteiro era o quintal da casa daqueles e suas bocas. Em cada casa havia um elevador, um banheiro, uma cozinha, uma mesa. Em cada escritório havia um hall, um tapete, uma garagem, uma sala de reuniões. Em cada jardim havia um carro, uma árvore, um muro, um banco. Em cada hotel, cada avião, cada caminho, cada parque, cada igreja.
Os beijos tornaram-se vicio. O sexo tornou-se arte. Invenções. Brinquedos. Comidas. Amarras. Fantasias. Segredos sussurrados nos ouvidos durante o trabalho. Olhares cortando salões durante solenidades. Dorothy! A mais poderosa das amantes era agora a dona da faca afiada suja de drogas alucinógenas. Vício. Vício. Vício. Testes emocionais. Resistência testada. Droga. O sexo livre de barreiras ganhava uma dimensão inimaginável. Beijos. As bocas decoram o caminho. Um beijo não é mais um beijo. Dorothy rainha do sexo sabia agora usar a voz. Dona dos olhares de faca, arrancava suspiros à distância. Era possível fazer sexo com os olhos. Vício!
Era possível não respirar. Era possível levar à loucura com o mover de um músculo. Um sorriso. Um toque. Um suspiro ao telefone.
Dorothy morria por sexo. Matava por beijos. Roubava os olhos de faca de todos os seus afazeres. Tornava-se o vício e a loucura de quem só queria o controle do portão.

Mas chegou o dia da guerra dos mundos de Dorothy. A loucura era grande, mas não maior do que a vontade de lembrar seu nome. Dorothy partiu. O olhar de faca perdeu seu brilho. A vida voltava sem novidades.
Pobre Outra! Até hoje vaga pela vida, jurando não ter visto os olhos, não ter sentido os beijos, não saber o gosto do vício. Ainda procura em silêncio por outra boca.
O que não sabe, é que quando furou os olhos para não mais provar do beijo, o poder de ser Dorothy morreu. O encanto foi quebrado. Não haverá outro beijo. Nunca mais faca suja de mel. Nunca mais no quintal de sua casa brotará desejo...

Ficou provado que Dorothy habitava o universo paralelo de onde veio o moço do portão. Não há outros como eles. Não adiantaria buscar. Este é o definitivo, irreversível, inquestionável fim da existência de Dorothy - Rainha dos olhos de faca, dona da droga e do desejo que alucina.

Dorothy - Set 1999 (postado em Set 2005)

3 comentários:

Alice Salles disse...

"A loucura era grande, mas não maior do que a vontade de lembrar seu nome. Dorothy partiu. O olhar de faca perdeu seu brilho. A vida voltava sem novidades." Mas as novidades sempre vem, e elas sempre trazem possibilidades muito maiores e mais intensas do que as anteriores... As coisas nunca ficam iguais... Texto tão bom, Mercy!

Leticia disse...

Mercedes...

Obrigada!!!!

Marcos Freitas disse...

oh Dorothy...