terça-feira, março 27, 2018

_sobre ser eu


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Fui criada como pessoa branca, hétero, em escola particular, etc, o que me faz parte da “elite” do país, gostando ou não. 
Num determinado momento da vida precisei rever meus valores e princípios, vigiar meu pensamento e minhas palavras, para parar de reproduzir ideias que não eram de fato minhas, pensamentos incutidos pelo meio, machismos e preconceitos que são inseridos na vida da gente ao nascer, como se fosse um chip que da play assim que a gente - branco, hétero, com acesso à escola e proteína - nasce.
Precisei resetar tudo e começar de novo, e aconteceu depois de escalar degraus suficientes para me tornar realmente elite. Porque enquanto eu fui classe média baixa sem um pila no bolso, parecia que não era feio fazer pouco do outro - tão parecido comigo - sem perceber.
Na infância, eu era a pobretona da classe, morava meio mal, só ganhava roupa nova no Natal, dividia o quarto, o pacote de absorvente, o guarda-roupas e o banheiro com o resto da família. Não era convidada pras festas e eventos das colegas de colégio mas nada disso era importante pra mim ou, sendo bem cruel comigo mesma, parece que não dói se você acha que, mesmo sendo inferiorizada, você nasceu superior a mais alguém.
Meu primeiro trabalho veio na oitava série. Fui alfabetizar crianças numa escola que o meu colégio mantinha numa comunidade (nos anos 70, o nome era FAVELA mesmo). Lá eu tive o primeiro contato com gente que levava uma vida miserável. Mas a gente ainda achava que eles eram assim meio que por opção, a gente ainda olhava pra eles como inferiores, a gente ainda não se dava conta do porquê da miséria. A gente ainda acusava a mãe das crianças de "fazer um filho com cada pai" e "ter um monstrinho de cada cor". A gente ainda ensinava regras de higiene para as crianças, com a superioridade de quem treina chimpanzés, como se eles não comprassem escova de dentes por opção ou não "quisessem" tomar banho com sabonete. A gente raspava as cabeças das crianças nas epidemias de piolho, como num navio negreiro. A gente achava que a família "atrapalhava" o desenvolvimento civilizatório das crianças. Nós não passávamos de crianças também, mas éramos sinhazinhas. Fazíamos caridade, sim, mas com o olhar do colonizador. Quando eu penso nisso hoje, imagino a cara dos índios olhando para os portugueses, enquanto eles extirpavam a cultura milenar das tribos, alegando necessidade de higiene, civilização e conhecimento. Falando assim parece feio ne? Porque é.

Ao mesmo tempo que fazíamos um trabalho realmente incrível, nossa origem branca colonizadora gritava muito alto. Mesmo a minha origem - pobretona, penetra na festa do clube com roupa do ano passado, vinda de uma família sem pedigree que teve origem, de um lado no filho de um padre, do outro lado no bastardo do barão, passando pela menina que se casou com um homem na Espanha e com outro no Brasil e ninguém ficou sabendo. Mesmo com essa origem moralmente questionável para os padrões católicos, a minha era só uma família católica, branca, brasileira, trabalhadora. Muito trabalhadora. Mas foi no seio da família que eu escutei que os moradores da Cidade de Deus iam plantar maconha no vaso sanitário, porque não sabiam pra que ele servia. Foi dentro de casa que ouvi que mulato é preguiçoso porque “a mistura não da certo”, e vamos dormir porque “amanhã é dia de branco”, como se preto não trabalhasse de verdade. Foi na escola católica que eu vi meninas cochichando como princesinhas sobre as alunas bolsistas, filhas da faxineira ou órfãs: "ela é pobre! nossa coitada!" e mantendo distância profilática.
A Escola se esforçava, mas era uma escola de elite e você mostra o mundo, mas só quem tem olhos enxerga. Foi nessa mesma escola que eu tive que decorar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprendi sobre o holocausto, aprendi que liberdade religiosa é um direito, vi a minha irmã bem branca desfilar na rua vestida de Orixá num 7 de Setembro, conheci um padre hippie e comunista, aprendi a história de Israel e de Zumbi dos Palmares, convivi com freiras modernas e revolucionárias que tentavam nos incutir alguma desobediência civil, em plena ditadura militar. Conheci a história da arte e da civilização, entendi que a arte é livre e incensurável e retrata as mazelas de seu tempo, entendi que o mundo é maior do que a minha realidade e aprendi que o planeta precisa muito, mas muito de justiça social.
Dessa mesma escola saíram pessoas lindas e humanas que eu trago comigo, e outras que eu precisei bloquear nas redes sociais, tamanho o fascismo que vomitam todos os dias em posts e notícias falsas.
Mesmo tendo essa formação incrível, cresci numa cidade preconceituosa e rude, repetindo grande parte de seus discursos horríveis, como já demonstrei ali em cima. Digo e repito que falamos e fazemos coisas horrorosas, por hábito. Por ter ouvido. Por deduzir que é o certo já que nascemos sabendo. E mesmo tendo acesso à verdade, continuamos, pois somos frutos de toda uma rede de pensamentos. É esse hábito que faz com que as pessoas reclamem que o aeroporto parece uma rodoviária porque a classe C invadiu. É esse hábito que faz você atravessar a rua quando um jovem negro vem andando na sua calçada. É esse hábito que faz olhar estranho para a mulher de classe baixa ao seu lado no mestrado. Olhar estranho não é olhar feio; é olhar com aquela mesma admiração bobinha que você olha pra criancinha que tenta levantar no berço, assumindo a sua superioridade por andar sobre duas pernas há anos...
Estes anos metafóricos, - justamente esses anos de caminhada - foram tirados dos negros, dos índios, são tirados dos LGBT, das mães solteiras, dos miseráveis e das mulheres. Eu sou mulher e reconheço que reproduzi muito machismo pela vida a fora. Falei que era feminina e não feminista (céus!), escrevi criticando mulheres que “dançam até o chão feito putas e depois não querem ser estupradas na saída  da balada”. Briguei para minha filha sentar como mocinha, não falar palavrão porque fica feio numa mulher, disse pra ela que mulher bêbada é bagaceiro, disse que ela tem que se valorizar para não parecer moça fácil (logo eu, incapaz de ser difícil), e outras bobagens sem fim.

Hoje eu sei, mas pra saber tive que rever. E dói. Dói porque o espelho reflete uma imagem feia e ninguém gosta de se ver assim. É fácil apontar o dedo, difícil é se reconhecer vaidosa e injusta.
Hoje eu sei a verdadeira história do Brasil e de todas as colônias mundo. Sei como funciona. Sei como o colonizador arranca a alma, a língua e a religião do nativo. Sei do negro no Brasil. Hoje eu reconheço racismo em frases que eu já disse, em nome de sobremesa, em ditados populares, em olhares de conhecidos e na maneira de muita gente tratar os funcionários. Hoje eu sei que rir do sotaque de alguém é dizer que eu sou melhor do que ele. Hoje eu sei que a “ameaça comunista” é só o inimigo eleito para justificar desmandos e fascismo, e que toda guerra por liberdade é unicamente comercial - geralmente petróleo - porque o patrão não se importa com a sua liberdade. Hoje eu sei que o medo vive debaixo da cama de pessoas que eu aprendi a amar desde que nasci, porque elas são ignorantes. É medo de perder privilégios e ter que experimentar a chibata que nunca estalou nas costas de um dos seus. Como se o oprimido fosse o verdadeiro inimigo e tivesse sede de vingança. Hoje eu sei que lutei do lado do colonizador e nunca pedi perdão aos atingidos, e que por muito tempo preferi o que vem de fora à cultura que deveria ter formado a minha personalidade. 
Já vivi mais de metade da minha vida e quero chegar ao final dela sendo mais justa, mais fraterna, mais humana e mais coerente. Hoje, as bandeiras que eu levanto pesam menos sobre os meus ombros, porque são autênticas e me pertencem. Tenho orgulho da pessoa que me tornei, e quando olho em volta e vejo meus pares, meu sorriso cresce do tamanho do planeta inteiro, porque era esse o espelho que me faltava.

O que precisa mudar urgentemente é o olhar de superioridade equivocado das pessoas, porque não há superioridade em nenhum departamento da vida. É um engano. Há que se acostumar com a igualdade. Prezar por ela. Há que se olhar para dentro, porque o inimigo mora na alma e é dentro que se transforma o mundo.

Era isso.

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